O cartógrafo ignorado
Quando se fala em Expansão Portuguesa, invariavelmente se imaginam naus enfrentando vagas alterosas atiçadas por borrascas ou totalmente estagnadas nas calmarias da região equatorial. Mas o certo é que não raras vezes os navegadores abandonaram as embarcações para se aventurarem terra adentro. A saga dos bandeirantes no Brasil, a exploração das massas continentais africanas, os grandes espaços asiáticos submetidos ao Islão – Império Otomano, Irão safévida, Afeganistão, Índia do Grande Mogol – a imensa Tartária, o Tibete ou ainda a China continental, provam que os portugueses não receavam afastar-se dos mares.
Esses destemidos pioneiros, no caso asiático, maioritariamente religiosos jesuítas, inauguraram uma nova era: a era da observação científica. Não obstante, as enciclopédias e os atlas da actualidade ignoram-os por completo. E por que será? Provavelmente por desconhecimento dos factos e/ou mero desprezo por uma nação à qual nunca foi reconhecida o seu real valor no palco da História.
Lamentavelmente continuamos a precisar que venham os investigadores estrangeiros lembrar-nos das nossas responsabilidades. Ainda recentemente o investigador norte-americano Liam Matthew Brockery, a respeito da versão chinesa do seu livro “Journey to the East – The Jesuit Mission to China”, publicada pela Universidade de Macau, admitia que, no que respeita ao historial dos jesuítas na Ásia, «tem havido uma maneira de contar a história que beneficia os italianos, os franceses, os alemães», alertando para a necessidade de estudar as fontes originais. Dizia Brockery que embora «não se possa negar que esses jesuítas também fizeram parte deste encontro entre o oriente e o ocidente», importava recordar que «a esmagadora maioria dos seus pares eram missionários portugueses». Resumindo e concluindo: «A história mais vasta é assente na presença portuguesa do Oriente».
Entre os muitos desses injustiçados da história consta o eminente Félix da Rocha.
Nascido em Lisboa a 31 de Agosto de 1713, Rocha optou pela missão da China após oito anos de estudos – quatro de Filosofia e quatro de Teologia. Enfrentou os inúmeros mistérios do continente em 1735, após ter frequentado o Seminário de Macau, tendo ingressado posteriormente na Corte de Pequim, em 1738, onde foi astrónomo. Cedo caiu nas boas graças do imperador que via nele um homem de muita ciência e virtude. O seu superior, Ignacio Koegler, descreve-o como «um jovem de génio vivo e penetrante e ávido de saber».
Em 1753 é nomeado, pelo imperador Qialong (1736-1796), Assessor do Tribunal das Matemáticas. Após o falecimento do seu director, August von Hallerstein, passou a dirigir o Observatório Astronómico de Pequim. Na companhia do alemão viajou até ao país de Muran, nas proximidades da Coreia, para traçar o mapa de toda essa região. Em 1755, como recompensa por ter mapeado as regiões do Turquestão e da Tartária – a Dzoungária – habitadas pelos elutos e torgutes, o imperador nomeia-o mandarim de segunda ordem. Para a execução desse trabalho ciclópico Félix da Rocha tinha contado com a preciosa colaboração do seu amigo, o padre Pedro Espinha. Desafiando perigos sem conta, ambos os jesuítas regressariam a essa inóspita região para terminar o trabalho: observar a latitude, deduzir a longitude, as curvas orográficas e as distâncias. Estiveram em Khami, Barkul. Turfan, Korle, Manas e muitos outros lugares. No total determinaram quarenta e três posições geográficas. Foram os dois primeiros europeus a percorrer tais paragens, desde que nela andara, século e meio antes, Bento de Góis na demanda do Cataio.
Por duas ocasiões, em 20 de Agosto de 1774 e em Março de 1777, Félix da Rocha seria enviado ao pequeno Tibete, Tibete Oriental, acabado de ser anexado ao império chinês, com o objectivo de traçar o mapa de toda aquela região. Ficaria assim identificado o país dos Miao-tse acabado de conquistar pelo imperador Qialong.
Os mapas de Félix da Rocha e de Pedro Espinha serviriam de base para os estudos e mapas sobre a Ásia Central, hoje mundialmente conhecidos, efectuados por Klaproth, Ritter e Alex de Humboldt. Também o Ephemerides (1776), de Maximiliano Hell, trouxeram a lume as observações astronómicas desses missionários. Estes personagens do mundo científico acabariam por ficar com todos os louros dessas investigações, relegando para o esquecimento os pioneiros portugueses.
A propósito de tão grande injustiça, o jesuíta Cibot escrevia, em 1770, o seguinte: «Acabam de ser publicadas mapas e notícias sobre regiões recentemente conquistadas, sem que sejam mencionados os nomes dos nossos padres portugueses que, por ordem imperial, recolheram os dados e as coordenadas desses mesmos locais».
No ano de 1750, em carta enviada a D. Policarpo de Sousa, bispo de Pequim – que aportara a Macau, vindo de Portugal, em 1726 – Félix da Rocha desabafava assim: «eu sou o da Vice Província o mais velho na missão dos que se acham em Pequim, porque todos os padres que aqui achei, excepto sua Exa., já lá vão para outra vida e nenhum desde que cá estou, tem servido mais por neves, frios, perigos e consomições do que eu, mas como tudo é por Deus, só dele terei o prémio, como espero na Sua Divina Bondade…».
O padre Rocha ocupou o cargo de procurador da missão portuguesa em Pequim, e de vice provincial em 1754 –1757 e de 1762 a 1766. A sua intervenção foi preponderante para que os prisioneiros portugueses em Nanquim – padres Araújo, Viegas, Pires, Dinis Ferreira e José da Silva – fossem libertados e pudessem regressar a Macau.
Resta acrescentar que o padre Rocha remeteu à prestigiadíssima Academia de São Petersburgo 64 tomos das obras escritas pelos jesuítas de Pequim, cidade onde, a 22 de Maio de 1781, faleceria. Faltavam dois meses para completar 68 anos.
Joaquim Magalhães de Castro