O encontro com o rajá Siripada
Uma centena de metros terra adentro, resguardados por um tecto de zinco, estão à vista uns quantos metros de pedras de granito – parte de uma área com um total de cem metros de comprido por cinco de largo, que foi alvo de escavações em 1980 – que constituíam a base da muralha que a pena de Pigafetta descreve como “um grande muro construído de grandes tijolos e com barbacãs, como nas fortalezas”. Erguida ao longo da costa, em frente à ilha artificial de Terindak, a sul, e, para norte, encarando terra firme, a muralha (idealizada numa maqueta à escala real exposta no Museu Marítimo) tinha dupla função: proteger Kota Batu de possíveis ataques e, simultaneamente, servir de via principal de acesso à dita cidade. Assente nela estariam “cinquenta e seis bombardas de bronze” e seis outras de ferro, que, de resto, como nota o cronista, deram várias provas da sua capacidade de fogo durante os dias que os estrangeiros passaram na cidade. Só com muita imaginação se consegue visualizar semelhante fortaleza, pois a floresta é hoje espessa e o terreno bastante acidentado. Ademais, o espaço entre o mangal e o monte é reduzido. Separam-nos uns duzentos metros, se tanto.
Foi nesse preciso local que a delegação da frota de Magalhães, capitaneada pelo peculiar João Lopes Carvalho, foi recebida pelo governador, com toda a pompa e circunstância, e dali levada, no dorso de elefantes; numa primeira etapa, até à residência do governador; depois, ao palácio do sultão. Como escreve Pigafetta, “tendo chegado à cidade, tivemos que passar duas horas na canoa para esperar a chegada de dois elefantes cobertos com sedas, e doze homens, cada um dos quais carregando um pote de porcelana coberto de seda, para colocar os presentes que iriamos oferecer”.
Tudo indica ser este o episódio retratado numa enorme pintura exposta no lóbi do Empire Hotel, na praia de Jerudong, propriedade de um familiar do actual sultão. Nela podemos ver duas naus ancoradas. A mais próxima, com as velas caçadas; a outra, de velas desfraldas, pronta a zarpar se necessário fosse. Rodeiam o primeiro navio uma série de pangaios, e uma embarcação de maior calado e com uma coberta de colmo que aguarda junto a um cais de bambu onde se perfilam uma série de dignitários protegidos por parassóis e soldados armados com espadas, escudos, lanças e respectivas flâmulas. Avista-se ainda uma aldeia lacustre, de onde se destaca um edifício que aparenta ser uma mesquita ou algum tipo de palácio e, ao canto inferior direito, podemos ver dois elefantes montados por guerreiros devidamente apetrechados. Numa das árvores distinguem-se dois pássaros. Um, em pleno voo; o outro, um calau, também conhecido como bico-de-corno ou bico-de-serra, considerado hoje o pássaro nacional da ilha do Bornéu, pousado no ramo de uma árvore, é atento testemunha daquele momento histórico.
Montados nos elefantes, precedidos pelos doze homens, “que levavam os nossos presentes nas suas vasilhas”, assim entraram os delegados no domicílio do governador, que lhes ofereceu um jantar “com muitos pratos”. Diz Pigafetta que passaram a noite “em colchões de algodão forrados com seda e cobertos com lençóis de lona de Cambaia”.
Como era da praxe entre príncipes asiáticos, e daí o crivo oficial do governador, o almejado encontro demorou algum tempo a acontecer. Queixava-se Pigafetta que estiveram um dia na casa do governador, “sem nada fazer”, tendo sido enviados, “ao meio-dia”, ao palácio real montados no mesmo elefante que os conduzira na antevéspera, sempre acompanhados pelos homens que carregavam o presente destinado ao sultão. O cronista nota que da casa do governador ao palácio do rei “todas as ruas eram guardados por homens armados com lanças, espadas e paus”, de acordo com uma ordem especial do monarca.
Entraram no pátio do palácio montados nos paquidermes e depois de terem desmontado pediram-lhes que subissem uma escadaria, atrás deles o governador e alguns oficiais. Depararam de seguida com uma sala grande repleta de cortesãos, “aos quais chamaríamos de barões do reino”, e pediram que se sentassem numa esteira, sendo colocados junto a eles os presentes.
Ao fundo desse salão havia um outro, um pouco menor, forrado com lençóis de seda, onde foram abertas duas cortinas de brocado que lhes permitiram ver duas janelas, que de imediato iluminaram a sala. Aí estavam trezentos guardas do rei armados com punhais, “que firmemente apoiavam contra as suas coxas”. Ao fundo desse quarto havia uma grande porta fechada e tapada por uma cortina de brocado, que também foi aberta, permitindo que vissem “o rei sentado numa mesa na companhia de uma pequena criança, e a mascar betel”. Atrás dele havia apenas mulheres.
Foi então que um dos cortesãos os avisou que não estavam autorizados a falar com o sultão; mas que se tivessem algo a dizer, poderiam transmitir-lhe a mensagem que ele, por sua vez, passá-la-ia a um cortesão de escalão superior, e este ao irmão do governador, “que estava presente na pequena sala”, e que, “através de uma zarabatana colocada num buraco na parede”, exporia os seus pedidos a um dos ministros junto do rei, pois só este estava autorizado a falar directamente com ele. Advertiu-os, porém, que antes disso tinham de fazer três reverências ao monarca, “levantando as mãos unidas acima das cabeças, e às vezes levantando um pé e depois o outro”. Após cumprirem com as obrigatórios salamaleques, da forma indicada, os visitantes informaram o soberano local que viajavam em nome do rei de Espanha que queria “viver em paz com ele” e “estabelecer laços comerciais” com os habitantes da ilha.
Joaquim Magalhães de Castro