Cartas do Bornéu – 4

A cidade no rio de Pigafetta

Verdadeiro ex-libris, cúpula e extremidades dos minaretes cobertos a ouro, a grande mesquita de traça mogol de Omar Ali Saiffudin domina a paisagem do centro de Bandar Seri Begawan, e esperemos que assim continue por muitos mais anos. Por lei, no Brunei-Darussalam, nenhum outro edifício das vizinhanças pode ultrapassar em altura um templo dedicado a Alá. Graças à sensata medida, prédios com pretensões a arranha-céus mantêm baixa a bolinha; um sossego para a alma das bem-aventuradas e não deslumbradas criaturas obrigadas a acatar os bizarros ditames da dita sofisticada sociedade actual. Aliás, no coração da cidade predominam edifícios públicos de poucos andares, religiosos ou não, e alguns exemplares arte deco, sobras do período colonial que aqui, primeiro, de uma forma óbvia e, depois, transvestido de poder a meias com os britânicos – encarregados da defesa e dos negócios estrangeiros – se prolongaria até 1984. Um deles, sósia em ponto pequeno do edifício da capitania do porto de Lisboa, ergue-se a poucos metros dos dois cais em degrau onde embarcam e desembarcam os residentes do Kampung Air, o mais genuíno habitat da gente de cá; na verdade o cerne histórico de Bandar, pois naquele local – supõe-se – residiria o comum dos súbditos do poderoso sultão Bolkiah, acoitando-se este num palácio assente em terra firme, todo em madeira e sem um único prego. Essa é a dedução mais lógica, tendo em conta a bacia do rio que nesse ponto geográfico se alarga de modo considerável. Ademais há o canal que se insinua terra dentro e ao enveredar a oeste ramifica-se criando assim um agradável espaço verde em jeito de ilha.

A acreditar no relato de António Pigafetta, aquando da chegada das naus “Victoria” e “Trinidad”, sobreviventes da frota de Magalhães, naquele que seria o primeiro contacto destes povos com os europeus, um clã, talvez animista, talvez hindu, habitaria as imediações do Kampung Air, mantendo acesos conflitos com os malaios já islamizados de Kota Baru, povoação situada a uns cinco quilómetros rio abaixo. Dito isto, uma questão se levanta: será que o Kampung Air de hoje era o Kota Baru de outrora, ou até, quiçá, um prolongamento deste? Tudo indica que sim, pois em frente do actual campo arqueológico (a umas quantas ruínas, às tumbas de poderosos sultões, aos dois museus, a uma mesquita e a meia dúzia de casas se resume o actual património da antiga sede do império do Bornéu) não há quaisquer indícios de ter existido uma povoação-palafita, aliás, nem a área fluvial em frente o permitiria. Se houve, seria de dimensão reduzida, nada, portanto, próximo sequer “dos vinte e cinco mil fogos ou famílias” mencionados pelo cronista oficial da primeira viagem à volta do mundo, que nos diz ainda que, à excepção “da casa do rei” e de alguns notáveis, a cidade era “construída no próprio mar” e constituída inteiramente por “casas de madeira, assentes em grandes vigas que as protegiam da água”. Especifica o piemontês que “nesse porto do Bornéu” além da povoação “onde Siripada (Bolkiah) é o mestre”, existia uma outra “habitada por gentios, também construída no mar e ainda maior do que a dos mouros”. Pelos vistos, a inimizade entre os dois povos era tal que não havia dia em que não se envolvessem em escaramuças, ou até mesmo batalhas campais. Garante Pigafetta que o rei dos gentios era tão poderoso quanto o dos mouros, embora “não tão vaidoso, e parece até que seria fácil de convertê-lo ao Cristianismo”. Esse desiderato viria a concretizar-se, anos mais tarde, pela acção dos portugueses que ali e noutras partes do Bornéu introduziram o Cristianismo, fundando uma missão que permaneceria activa pelo menos até 1590.

Ainda a respeito da cidade sobre palafitas, Pigafetta não esqueceu de pormenorizar que “quando a maré sobe as mulheres que vendem as mercadorias de primeira necessidade atravessavam a cidade em barcos para tratarem dos seus negócios”. Já não existem por ali tais feiras flutuantes, embora resistam ainda no Chao Praya, em Banguecoque, e com particular colorido e animação nas águas do delta de Banjarmasin, no sul do Bornéu. Tudo o que agora cruza as águas plácidas do Brunei são os barcos rápidos de proa pontiaguda e popa chata que mais parecem metades de barcos normais, e que a grande velocidade transportam os residentes ou o ocasional turista que por uns quantos dólares pode fazer um passeio fluvial, preferencialmente ao fim da tarde e, com alguma sorte, poderá até ter a oportunidade de vislumbrar um ou outro exemplar dos macacos-narigudos, espécie endémica do Bornéu.

Numa tentativa de incentivar os residentes a ali continuarem a viver, o Governo dotou o bairro lacustre de todas as facilidades – escolas, dispensários, lojas e até uma mesquita – e foi demolindo as casas mais degradadas, substituindo-as por edifícios modernos e de vários andares, o que lhe retirou muita da piada. Digamos que o Kampung Air é auto-suficiente e os seus habitantes só não podem circular aí de carro, deixando-os estacionados em local apropriado na outra margem do rio Brunei. Apesar das melhorias introduzidas, o Kampung Air continua a ser associado às pessoas de estrato social inferior, se bem que no dito parque de estacionamento se depare amiúde com carros de alta cilindrada.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *