Cartas do Bornéu – 28

Marfim de calau e cabeças fumadas

No Museu de Sarawak, instituição à moda antiga, existe uma pequena galeria dedicada ao naturalista Russel Wallace, o que me parece perfeitamente justo, pois foi dele que partiu a iniciativa de ali congregar muito do material que até então recolhera. Inauguraria-o, em 1891, Charles Brooke, o segundo rajá branco, pois também o governante pretendia expor artefactos tribais. Resumindo: numa das vitrinas temos o busto do co-autor da teoria da evolução das espécies, uma imagem do seu afamado anfíbio – o sapo-voador-de-Wallace – a espingarda e a caixa que simultaneamente lhe servia de assento, mesa e local para armazenar os bichos prontos a dissecar e a entrar no catálogo. Há ainda uma folha com trechos do seu livro “O Arquipélago Malaio”. Após a leitura da mesma fica-se a saber que Russel Wallace, no Bornéu, contou com o apoio de um rapazinho de dezasseis anos vindo de Londres com ele, mas que se mostrara inapto para o cargo. Já o malaio Ali, esse foi fundamental para o sucesso das suas investigações e acompanhou-o por todo o arquipélago. Após deixar Sarawak – como reza o panfleto – Wallace “contratou experimentados coleccionadores e taxidermistas”. Na ilha de Lombok, ressalte-se, além de Ali, Wallace fez-se acompanhar por um tal Manuel, “português de Malaca habituado a depenar pássaros”, que o britânico, do alto da sua arrogante condescendência, descreve como o “my Portuguese bird stuffer”.

Entre as inúmeros bichos – de todos os tamanhos e feitios; mamíferos ou répteis; anfíbios ou não – embalsamados para a eternidade num conjunto de salas bafientas que juntam etnografia com zoologia, bichos da terra com bichos do mar, e também muitos bichos dos céus, assumem especial destaque os calaus, não constituíssem eles relevante emblema identitário dos daiaques. Estes encaram-nos como uma representação divina, acreditando piamente que, por exemplo, se um calau sobrevoa as casas de uma aldeia isso é sinal auspicioso para toda a comunidade.

As florestas de Sarawak albergam oito das cinquenta e quatro espécies de calaus existentes no planeta, sendo o calau-corno-de-rinoceronte o pássaro oficial da província e o calau-encapuzado o maior de todos eles. Os bicos destas aves eram cinzelados pelos daiaques com intricados altos-relevos, podendo depois serem utilizados, juntamente com as plumas e o trajo guerreiro, como adereços nas cerimónias rituais. Os chineses seguir-lhes-iam o exemplo, embora recorrendo à sua proverbial minudência e ao inato requinte oriental. Obras de arte como aquelas expressas ao longo de milénios no marfim dos elefantes, também as há no marfim dos calaus, para desgraça dos mesmos. Não sei qual é o actual ponto da situação, mas temo que apenas algumas das muitas espécies expostas no museu existam ainda…

O rapé, usado entre índios sul americanos, tornou-se conhecido na China no século XVI graças aos portugueses, que aí o introduziram juntamente com o tabaco. Cheirar rapé passou a ser moda entre as classes abastadas, tanto no Oriente como no Ocidente, e a pensar nelas foram produzidas inúmeras caixinhas a partir de diferentes materiais. O marfim do calau, claro, não foi excepção. Nas vitrinas do museu podem ser apreciadas graciosas caixas de rapé em âmbar, porcelana, vidro e também em marfim de calau minuciosamente ilustradas com uma dessas paisagens chinesas inspiradas na região de Guilin. Os chineses chamavam-lhe “ho-ting” e tinham-no como preferido devido à sua cor amarelada e à pátina avermelhada junto ao bico do animal. O marfim de calau chegou a ter, inclusive, mais valor do que o próprio jade e tornar-se-ia no produto de exportação mais valioso de Sarawak.

Mais arrecadadas do que expostas, num espaço recôndito, cabeças e mandíbulas de enormes crocodilos de água salgada justificam os recortes de jornais relatando a façanha de um deles que comeu várias pessoas. Em jeito de comprovativo exibe-se o relógio encontrado no estômago do sáurio, tudo o que restou do malogrado camponês que lhe serviu de jantar. Mesmo ao lado, uma foto antiga de uma embarcação com a proa em forma de cabeça de crocodilo de mandíbulas abertas e, dentro delas, um mono aninhado. A estatuária de madeira é, aliás, muito comum entre os daiaques, sendo de destacar umas figuras híbridas, homem-animal, com os lóbulos das orelhas esgaçados – tradição dos caçadores de cabeças hoje muito em voga entre determinadas tribos urbanas adeptas da auto-mutilação – e enormes dentes. De resto, e quanto a madeirame, muitas, muitas e variadas máscaras.

Um dos objectos mais curiosos ali expostos são, sem dúvida, os crânios de inimigos mortos em batalha suspensos por várias argolas de ráfia entrelaçadas. Se para o espírito dos europeus o corte de cabeças e posterior processo de fumeiro das mesmas não passava de um acto selvagem e macabro, para os daiaques tratava-se tão só de um necessário ritual e nada tinha de humilhante para a vítima. Tanto as expedições de guerra como as caçadas de cabeças envolviam um número de complexos rituais e os crânios colectados eram merecedores de demoradas cerimónias e tratados com grande respeito. A fronte e os olhos eram tapados com peles de animais antes de seram suspensas as cabeças nas ditas argolas de rafia e colocadas sobre o fogo até secarem por completo, exactamente como se faz com a carne, o peixe ou os queijos.

Joaquim Magalhães de Castro

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