Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXXIV

Um reformador, Nicolau de Cusa

Vem aqui à colação normalmente um maior número de heresias ou desvios doutrinais, cismas e divisões, rupturas, mais ou menos violentas. Na edição de hoje optámos por memorar uma luminária, ou seja, alguém que pugnou por uma reforma, sem procurar rupturas ou cisões, com um nível intelectual de grande erudição, mas clareza e assertividade. Falamos de Nicolau de Cusa, teólogo e filósofo, alemão, considerado o pai da filosofia na Alemanha e também uma figura chave na transição do pensamento medieval para a modernidade, o Renascimento. Crítico, rigoroso, prático, mas sem desvios ou desafios doutrinais desmedidos ou ameaças. Abordemos soluções e clarividência, não apenas problemas e choques. A Igreja também vive de ideias e novidades.

Nicolau de Cusa nasceu no que é hoje território da Alemanha, perto de Trier (Tréveros), em Cues (Cusa), junto ao rio Mosela, em 1400 ou 1401. Faleceu em Todi, Itália, a 11 de Agosto de 1464, purpurado pela Igreja (cardeal). Seu pai era barqueiro, transportava mercadorias, no rio, até Coblença, principalmente. Reza a lenda que um dia se desentendeu com o filho e atirou-o borda fora, à água. Nicolau começara aí a sua vida de estudos. Verdadeira ou falsa a lenda, sabe-se que viria a estudar em Deventer e, em 1416, estava inscrito na Universidade de Heidelberg. Nicolau tornara-se protegido do conde Ulrich de Manderscheid, ao qual permaneceria grato durante toda a sua vida. Em Deventer, na Holanda, estudou numa escola dos Irmãos da Vida Comum, comunidade religiosa reformadora e inovadora, mas dentro da Igreja. De Heidelberg, passou para a Universidade de Pádua, na Itália, em 1423, onde se formou em Direito.

Nicolau acompanhou com enorme apreensão as tensões e problemas do Cisma do Ocidente (1378-1417), além da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre Inglaterra e França. Desceu até Roma, onde o achamos em 1425, onde é tocado pela pregação do franciscano Bernardino de Siena, orador vigoroso e inflamado, de cujos sermões Nicolau chegou a dizer serem capazes de extrair fogo de carvões apagados. Impressionou-o também o Papa Martinho V, no comando da hierarquia com firmeza e habilidade, tentando solucionar os problemas do Cisma.

 

Um humilde intelectual e reformador

Nicolau resolveu então investir toda a sua energia intelectual e moral ao serviço da causa da Igreja, da ortodoxia e não da heterodoxia (heresia). Estudou Teologia em Colónia, Alemanha, depois para em seguida ser ordenado sacerdote. Foi subordinado ao cardeal Giordano Orsini, então legado apostólico na Alemanha. Estimulado e apoiado pelo cardeal Orsini, dedicou-se à busca de textos antigos, capazes de ampliar o quadro de referências dos homens cultos. Vivia-se, na época, numa concepção humanista de que a expressão cultural do passado, mesmo da cultura pagã, deveria ser resgatada para que se revitalizasse a doutrina e fé cristãs. Nicolau acreditava que a doutrina cristã se robusteceria com a recuperação das fontes antigas, mesmo as pagãs, que deviam ser interpretadas e estudadas. Descobriu, em antigas bibliotecas monásticas, textos de Maimónides (1135-1204), pensador judeu, comédias de Plauto (254 a.C.-184 a.C.), entre outros autores antigos.

Foi também amigo de Leonardo da Vinci e do cientista Paolo Toscanelli, inspirador de Cristóvão Colombo nas suas viagens oceânicas. Lorenzo della Valla (1407-1457), crítico arguto, polémico, admirado mais tarde por Erasmo de Rotterdam, teve contactos com Nicolau, que o recomendou ao Papa, mesmo sendo ácido e verrinoso. Epicurista, Lorenzo publicaria um texto (“De Voluptate”) que provocaria o seu despedimento da cúria papal e desconfianças sobre Nicolau. Mas os seus princípios éticos jamais foram questionados no seu tempo e depois. Nicolau nunca se arvorara a ser moralista ou acusador, diga-se.

No Concílio de Basileia, em 1432, Nicolau de Cusa destacou-se como defensor do concílio como autoridade superior à do Papa sempre que estivessem na liça imperativas decisões determinantes para o futuro da Igreja. Tal como defendeu que o privilégio da Infalibilidade, concedido por Cristo à Igreja, só deveria ser atribuído ao concílio e não pessoalmente ao Papa. O Papa Eugénio IV, como outras figuras da Igreja, não ficaram muito agradados com Nicolau, que procurou sempre, todavia, esclarecer que esta sua concepção “democrática” de governo da Igreja se coadunava com a sua preocupação maior de assegurar a unidade dos cristãos. Para o efeito, publicou nessa época “De Concordantia Catholica”, no qual explica que na sua opinião “só pode haver concordância entre diferenças”, ou seja, não se pode falar em concordância onde não há diferenças. Uma posição avançada no tempo, precoce e luminar, mas coerente com o seu pensamento reformador. Defendeu também que numa instituição como a Igreja as diferenças são legítimas, mas a concordância é essencial, no sentido da unidade. Quando o Concílio de Basileia se reuniu depois, em 1437, Nicolau surpreendeu os padres conciliares defendendo o Papa Eugénio IV, em nome da preservação da unidade da Igreja. Reformista, como dizíamos, mas na ortodoxia e preocupação na unidade.

Numa época em que a unidade estava ameaçada, as heresias campeavam, as dissidências e divisões minavam, a instabilidade medrava, Nicolau era a voz da diferença. Pela unidade. Sem mentiras nem falsidades, sem coerção. Cusa, por exemplo, desmistificou o pretenso documento da “doação de Constantino”, que servia de justificação do poder temporal dos Papas. Foi Della Valla quem depois, em 1440, demonstrou a falsidade codicológica do documento, que era, pois, apócrifo.

Nicolau foi ainda incumbido pelo Papa de uma missão em Atenas, para preparar um entendimento entre os cristãos do Oriente e os do Ocidente, com o objectivo de promover uma reunificação de toda a Cristandade. Nicolau de Cusa teve, na sequência desta viagem, a visionária percepção de que, para assegurar a unidade do Cristianismo, era preciso promover e vincar a sua universalidade, mas sem eliminar de modo artificial a sua diversidade interna: a religião é una na diversidade dos ritos. Para fundamentar teoricamente essa proposição, Nicolau escreveu e publicou, em 1440, a sua obra-prima “De Docta Ignorantia” (“Da Douta Ignorância”), onde expõe as bases da sua teoria do conhecimento.

Em 1448, o novo Papa, Nicolau V, sucessor de Eugénio IV, nomeou Nicolau de Cusa cardeal e, três anos depois, mandou-o como legado apostólico para a Alemanha e regiões vizinhas. Sempre muito bem acolhido, com luxo e pompa, preferiu sempre condições modestas. Proibiu também que os sacerdotes cobrassem por confissões ouvidas e por absolvições concedidas, o que lhe valeu bastante popularidade entre os humildes e críticas entre o clero acomodado e os poderes. Estes ameaçaram-no, fisicamente até, com o Papa Calisto a chamá-lo para Itália.

A sua firmeza e coerência, espírito reformador na ortodoxia, independência intelectual, valeram-lhe sempre carinho dos Papas, como Pio II (Eneias Sílvio Piccolomini), seu amigo pessoal, que se tornou Papa e adoptou o nome de Pio II. Nicolau de Cusa é pois um grande e fantástico exemplo de reforma antes do século das reformas.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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