Coletes mágicos e um brinco minhoto
Kuching regista um dos maiores níveis de precipitação do mundo e quando chove é a cântaros e durante horas a fio. Dia de chuva é excelente dia para perdermos tempo à vontade nos museus sem ficarmos com aquela sensação de culpa de que devíamos era estar ao ar livre a desfrutar da energia do astro rei e a apreciar o azul do céu. Que por estas bandas, diga-se de passagem, são coisas raras, daí serem tão invejadas e apetecidas.
Quanto a espaços museológicos, Kuching não se pode queixar. Serviu-me de aperitivo o pequeno museu dos têxteis (sedeado num edifício outrora quartel-general das tropas japoneses durante a Segunda Grande Guerra) do qual destaco a secção reservada à indumentária dos indígenas. Ali, em formato manequim, tangas e coletes de casca de árvore-do-pão ou de escamas de pangolim (também utilizadas como afrodisíaco); acolá, em formato foto de dança cerimonial daiaque, protagonizada por indivíduos com bizarros chapéus cónicos na cabeça, certamente inspirados em modelos europeus. Não me admirava nada que esse costume remontasse à época em que por cá andaram portugueses, à semelhança do que acontece em tantos outros pontos do espaço geográfico malaio-indonésio. E nem sequer necessitaríamos de nos cingir ao Sudeste Asiático, pois fora dele o panorama é exactamente o mesmo.
Num universo marcado pelo maravilhoso e o sobre-humano, não admira que algumas das vestes tenham particularidades muito próprias, como é o caso de um colete de guerra dos iban (ditos daiaques do mar) feito de escamas de empurau (peixe dos rios do Bornéu considerado o mais caro na Malásia) que, de acordo com velha crença dessa tribo, neutralizam as lanças dos inimigos. O mesmo acontece com umas jalecas, também de casca de árvore mas revestidas de missangas, com figuras humanas com rosto de mafarrico nela estampadas que me fizeram lembrar os caretos carnavalescos do Nordeste Transmontano. Todos, sem excepção, de tronco nu, calções e botas pontiagudas, como as dos duendes. Os guizos e chapéus cónicos de alguns desses pícaros bonecos remetem-nos para os bobos das cortes medievais europeias. Onde se terão inspirado daiaques e orang ulus para produzir tais representações?
Irei encontrar, numa noutra secção do museu, o mesmo tipo de imagens replicadas em estatuetas de madeira muito ao jeito da bonecada da minhota Rosa Ramalho, não só no uso da cor mas sobretudo no seu aspecto intrinsecamente naife.
Um destes dias um qualquer criador de moda tirará dali a inspiração para uma linha de vestuário de Primavera-Verão…
Surpreendeu-me a extrema beleza dos motivos geométricos e das formas antropomórficas de certos objectos decorados com elementos da natureza estilizados – animais e plantas. Cauris, contas de vidro e dentes de animais estão presentes no trajo assim como nos utensílios do dia-a-dia (cestos, etc.). Apesar do interesse geral, a minha atenção centrou-se no departamento reservado aos chineses dos Estreitos e às baba-nonyas, originárias de Malaca. Vi ali vários exemplares de cabaias e blusas com bordados ponto cruz nas suas extremidades, sem dúvida um legado luso, efectivo tanto na Malásia como na Indonésia e que aqui terá chegado via Malaca. Lá estão as fotos de época das nonyas chinesas combinando a cabaia com o sarong. Convém lembrar que o bordado ocidental, seja em ponto cruz ou noutra técnica de origem ocidental, difere do bordado chinês, mais colorido e assente directamente no pano, e não só aí como também nos chinelos e nos sapatos.
Igualmente vi e fotografei um par de brincos de ouro em forma de coração que não destoaria nos lóbulos da orelha de uma moça trigueira do Alto Minho…
Expostos em montras apropriadas, colares feitos com diversos tipos de moedas coloniais, bucetas de ouro e pulseiras, de tamanho normal e umas outras que mais parecem destinadas a ser usadas em redor do pescoço, como as argolas das kayan birmanesas, as ditas “mulheres de pescoço longo”.
Noutra das salas, finíssimas lâminas de folha de ouro em formato de estrela, elefante, tartaruga, sol, lua quarto-crescente e de Buda sentado, testemunham uma época – século XIII – em que os reinos budistas e hindus garimpavam ouro nas águas do rio Kapuas. Mais tarde consubstanciariam-se no arquipélago indonésio, sobretudo em Java, dos quais a ilha de Bali é hoje derradeira e única reminiscência.
Mesmo em frente aos correios e a um luxuoso hotel, ambos sediados em edifícios de traça colonial, é excepção botânica, no amplo e vazio relvado do jardim de Padang Merdeka, uma mafumeira, “árvore do algodão sedoso”, nativa da América tropical mas muito comum nas aldeias malaias. Atinge em média entre 50 e 60 metros de altura, havendo algumas que chegam aos 90 metros, sendo por isso uma das mais altas árvores do planeta. A de Kuching é património municipal, tem oitenta anos e o valor pecuniário de um milhão e cem mil ringgits, “segundo uma estimativa feita em 2008”. Chega a ser cultivada pelo “algodão” obtido dos seus frutos, que podem ser consumidos por humanos, quando pequenos, e por animais, quando maiorzinhos. Folhas e raízes, utiliza-as a medicina tradicional, e o “algodão” serve para encher almofadas, colchões e – como bem especifica a sempre conveniente placa informativa – “coletes salva-vidas”. É de tal porte a dita sumaúma que se acoita na base do tronco um varano – versão reduzida do dragão de Komodo – que quase se confunde com as grossas raízes retorcidas e esverdeadas de musgo, parte delas com pontiagudos e resistentes espinhos. Vistas de frente, mais parecem as patas de um grande danês em pose de descanso.
Joaquim Magalhães de Castro