Contras as heresias, a Inquisição medieval!
Os Fraticelli e os Franciscanos Espirituais mereceram a nossa atenção na última edição. Como mereceram a de Umberto Eco na sua obra genial “O Nome da Rosa”. Cativaram também as atenções do mundo cristão, particularmente da hierarquia, que criticavam e sobressaltavam, mas também, no oposto a esta, o povo, que se fascinou pelo seu clamor à pobreza, a partir do modelo de Cristo e dos Apóstolos, que nada tinham de seu. Para se pacificar o rebanho da Igreja e afastar as heresias, do ponto de vista espiritual e religioso, surgiu a Inquisição. A maior parte das vezes esta instituição recebe a pior das conotações, pelos excessos e erros que não lhe estavam adjudicados, mas existem, todavia, muitas confusões e erros de interpretação, caindo-se na anedota e no risível.
A instituição denominada de “Inquisitio haereticae pravitatis”, mais conhecida como Inquisição, foi criada pelo Papa Gregório IX, em 1233, por meio da bula “Licet ad capiendos”. Aqui vemos que o seu escopo, a partir da sua matriz, era o combate às heresias ou desvios doutrinais. A heresia é, pois, um desvio da doutrina fixada pela Igreja. A partir do ano Mil o seu impacto aumenta, mercê do aumento da população, do renascimento das cidades, da maior riqueza e, decorrente, da pobreza e exclusão que disparam. As universidades e a literacia, em crescendo, mais a mobilidade e as cruzadas, são outros factores a ter em conta para o incremento das heresias medievais. Interpretações peculiares de certas partes das Escrituras ou de aspectos doutrinais por parte de alguns monges, frades e clérigos, foram o rastilho das heresias, que, insufladas pela pobreza, conduziram a uma difusão maciça dos desvios da ortodoxia.
Os hereges, chamemos assim, chegaram, por exemplo, na França, a constituir entre cinco a dez por cento da população de várias cidades no Sul e Sudoeste do reino, em particular cátaros e valdenses. As autoridades civis, a quem se acometeu o controlo e depois a resolução quando passaram a problema, falharam no combate às heresias, sentenciadas sempre ou pela espada ou pela fogueira, com resultados contraproducentes: a violência criava mártires e estimulava o fervor dos sobreviventes. A Igreja, no princípio, tolerou e não deu sequer qualquer ênfase. A partir do século XIII, contudo, teve que agir.
Contexto
Há que analisar o contexto. Quando os cátaros teimavam em manter-se activos, no século XIII, disseminando-se, tudo começou a mudar. Herdeiros de elementos do gnosticismo antigo e, pregando a existência de dois deuses, um deus bom e um deus mau, colocaram a sua “doutrina” em completa ruptura. Para os cátaros, toda o mundo material criado, incluindo o corpo humano, era fruto da acção do deus mau, daí resultando a corruptibilidade do tempo e o destino fatídico da morte. Já o deus bom teria criado o espírito dos homens, que, quando libertado da carne, voltava à sua pureza. Os cátaros identificavam Cristo com esse deus bom. Este tipo de crenças dos cátaros produziu sérias implicações de ordem social. Por exemplo, quando se opunham à ideia de ter filhos, pois julgavam que tal prática nada mais era que dar a um espírito puro a “prisão da carne”. Os bispos e o clero paroquial nada conseguiram fazer para estancar a disseminação das heresias, pelo que se impunha à cúpula da Igreja uma intervenção. Era preciso um tribunal, além de investigação de suporte.
Foi assim que o Papa Gregório IX criou a Inquisição pontifícia ou papal em 1233, dirigida directamente pelo próprio Papa. As ordens mendicantes – no caso, Franciscanos e principalmente Dominicanos – assumiram a direcção, no cargo de Inquisidor-geral que superentendia aos tribunais, sempre sob controlo papal, embora com possibilidade de acção supra-diocesana, ou seja, podiam intervir onde existisse uma heresia, caso fosse necessária a sua intervenção, devidamente enquadrada e quando não havia outra forma de intervenção.
Ao contrário do que se pensa, a Inquisição não matou milhões de pessoas na Idade Média e depois na Idade Moderna, embora tenha assumido contornos mais violentos nas monarquias ibéricas, em virtude de sua instrumentalização secular. A prática das torturas era efectiva, desde 1252, pela bula “Ad extirpanda”, de Inocêncio IV. A tortura era usada para obter a confissão dos réus, embora nem sempre e com muitos inquisidores a abdicarem de a usar. No contexto da época era prática comum na justiça secular a nobreza e os poderes terra-tenentes praticavam-na, com métodos até hediondos. Na Igreja havia recomendações expressas não se praticar a tortura em excesso, ou seja, não se podia chegar à mutilação ou à morte; a tortura só podia até ser praticada em casos específicos. O seu uso era controlado, para ser aplicada era necessário que existisse começo de prova e só podia servir para fazer completar confissões já feitas. Não era um castigo, usava-se arte como exemplo. Tal como todos os tribunais eclesiásticos, no da Inquisição também não existia a prisão preventiva, deixando-se os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade.
As penas eram variáveis, todos os “relapsos”, ou seja, os que se negavam a abjurar a heresia, eram então entregues ao braço secular da justiça, sendo esta a responsável pela execução da pena capital, ou a prisão perpétua, acompanhada com a total confiscação de bens e títulos. Quem executava o herege condenado não era a Igreja, mas a autoridade civil, o poder secular, ao qual era entregue, pois para a Igreja o derramamento de sangue era pecado: daí, por exemplo, o uso da fogueira como forma de suplício. Se um réu confessava e se mostrava arrependido, os magistrados aplicavam penas menores como flagelação, jejuns, peregrinações ou multas. Nos casos mais graves obrigava-se a usar, sobre as vestes, um “sambenito”, uma veste penitencial composta por uma espécie de cone pontiagudo (ou uma mitra mais alta) sobre a cabeça e um escapulário largo tipo poncho, que deveria ser usado em público para expiação pública da falta, com o consequente ostracismo social, durante o período estipulado. De referir que os acusados não tinham direito a defesa, a advogado, portanto, além de também não se poder interpor recursos sobre as sentenças.
Muitas vezes se associa também a Inquisição à “caça às bruxas”, mas neste caso, também fortemente empolado pela imaginação popular, nutrida por lendas e contos, além do célebre códice, depois livro, denominado de “Malleus Maleficarum”, ou seja, “Martelo das Bruxas”, um manual do inquisidor para esta actividade inquisitorial. Na realidade, os acusados de bruxaria ou feitiçaria, masculina ou feminina, foram poucos, em comparação ao flagelo social e religioso das heresias. As acusações de bruxaria incidiam normalmente sobre mulheres (que viviam sozinhas ou recusavam casamento, ou que tinham formas de vida nocturna), solteiros (ambos os sexos), idosos solitários e figuras providas de grande fealdade.
Muito activa até ao século XIV, a Inquisição incidiu particularmente sobre os movimentos heréticos, que combateu e muitos extinguiu. Estes movimentos mais do que religiosos eram políticos e sociais, causando instabilidade, crueldade, libertinagem, problemas vários. No século XVI será reavivada a Inquisição, aqui ganhando foros nacionais e instrumentalização política: contra judeus, mouros, protestantes, bruxas, “desviantes”. Uma página da história da Igreja que necessita de ser contextualizada e melhor explicada.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa