Cartas do Bornéu – 16

Porto de Nossa Senhora de Agosto

Assinala o ponto mais elevado da ponta do Bornéu um redondo monumento inaugurado em 2005 e não muito longe dele, com vista privilegiada para a baía em forma de lua crescente, uma placa de cimento a fazer lembrar as que ainda resistem no interior de Portugal, indicando quantos quilómetros faltam para os locais onde queremos chegar e lembrando-nos isso mesmo quando ali chegamos, com informação a respeito de um herói local, um chefe rungu. Diz-nos que o “bravo guerreiro” resistiu à agressão dos piratas invasores nessa baía, usual porto de desembarque desses predadores responsáveis pelo progressivo êxodo das tribos locais para o interior da ilha. O dito régulo assinaria, em 1881, um pacto com os ingleses a troco do “desenvolvimento e prosperidade na região”. Terá sido mais a troco de protecção contra as agressões piratas, pois do prometido desenvolvimento e prosperidade não existem quaisquer vestígios.

De acordo com uma tradição oral que os locais fazem questão de manter acesa e de que muito se orgulham, terá sido nessa baía que desembarcaram os homens da malograda expedição de Fernão de Magalhães após a sua visita o rei do Brunei, antes de rumarem a sul até às tão apetecidas ilhas das Especiarias. Esta é também a opinião de António de Herrera y Tordesilhas, cronista coevo da expansão castelhana, que acredita que os navios foram reparados na própria ilha do Bornéu e, assim sendo, só podia ter sido na praia da Ponta do Bornéu.

Contudo, António Pigafetta refere o local do desembarque como “uma ilha chamada Cimbonbon” que mostrara ser um porto perfeito para reparar os navios que se encontravam em estado lastimoso. Por isso ali arribaram, mas como faltavam os materiais os nautas acabaram por se demorar no local quarenta e dois dias. Durante esse tempo cada um deles trabalhou duro, “em uma coisa e outra em outra”, realçando o italiano que a maior fadiga foi terem “de andar descalços até os bosques de madeira”.

A Cimbonbon a que se refere Pigafetta é, muito provavelmente, Banguey ou um dos ilhéus vizinhos situados entre Bornéu e Palawan, e que são perfeitamente visíveis quando nos sentamos no único restaurante da baía, um excelente posto de observação.

Cimbonbon é designado pelo autor do “Roteiro” como “Porto de Santa Maria de Agosto” porque foi alcançado a 15 de Agosto, dia de Nossa Senhora de Agosto.

Se já antes, ao descrever o reino animal daquelas paragens, Pigafetta assinalara a abundância de galinhas, gansos, corvos e as mais diversas espécies de aves, realçando ainda a presença de elefantes, cavalos, búfalos, porcos e cabras – espécies que hoje, curiosamente, só muito raramente se avistam – na “ilha da aguada” chama a atenção para a presença de javalis selvagens dos quais mataram um, depois de o terem seguido de barco, pois ia “de uma ilha para a outra”. Garante Pigafetta que a cabeça tinha “dois palmos e meio de comprimento, e seus dentes eram grandes”.

Os crocodilos são também mencionados, “tanto em terra como no mar”, mas ao longo dos tempos terão dali abalado pois não há actualmente notícias deles, embora sejam comuns na região uma espécie de iguanas, primos afastados dos dragões de Komodo da ilha das Flores.

O cronista assinala ainda a abundância de ostras e mariscos de vários tipos, destes últimos alguns cuja carne pesava “vinte e seis libras e até quarenta e quatro libras”. As conchas chegavam a atingir “cinco ou seis pés” e um peso de centenas de libras. Era tal o seu porte que a utilizavam os nativos para armazenar água. Para os europeus mais pareciam “fontes de água benta”. Tinham ainda, como assinala Pigafetta, uma outra utilização: “os nativos queimam-nas para fazer cal”.

Pigafetta refere também um pequeno peixe, “que tinha uma cabeça como a de um porco e dois chifres, de um só osso e cuja parte traseira se assemelhava a uma sela”. Ora semelhante descrição leva-nos a pensar que se tratava de um peixe do género heniochus, o dito “peixe borboleta”.

Uma das observações mais curiosas diz respeito aquilo que Pigafetta refere como “árvores que produzem folhas que estão vivas” pois “quando caem começam a caminhar”. Tais folhas, muito parecidas com as da amoreira, embora não tão longas, eram, afinal, insectos do gênero phyllium da ordem dos orthoptera, prosaicamente designados de “bichos-folha” ou ainda “folhas de pé” devido à sua semelhança com uma folha. Espécies há que simulam, com riqueza de detalhes, folhas que parecem ter sido parcialmente roídas por insectos ou manchadas por fungos. Também são conhecidos pelo nome de “esperança-folha”. Escreve o italiano: “Eles não têm sangue, mas se alguém os toca eles fogem”. Pigafetta admite até que manteve um desses bichos durante nove dias numa caixa e quando a abriu notou que aquele se encontrava numa posição diversa. “Estou em crer que essas folhas vivem apenas de ar”, concluiu o cronista.

Joaquim Magalhães de Castro

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