Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – XXI

Heresias e movimentos sociais na Idade Média

As heresias correspondem normalmente a um período de maior cristianização. Antes do ano Mil, normalmente quem não aceitava a doutrina cristã apegava-se ao paganismo, ou nele se mantinha. As heresias só surgem no seio do Cristianismo. Quando este atinge uma forte implantação e desenvolvimento doutrinário e espiritual, muitos caem na heresia. Depois do ano Mil, o contexto social, urbano, demográfico e institucional projecta ainda mais a latência da heresia.

A alternativa à Igreja já não é ser pagão, mas ser cristão de outra forma, ou noutra intensidade ou interpretação. Na Idade Média, já vimos que a primeira vaga de heresias surge no século XI com a Reforma Gregoriana. Além do seu fortalecimento institucional e da criação do valor e identidade que é a Cristandade, a Igreja, ou melhor o Papado, tenta adaptar-se às novas condições sociais e políticas, procurando impor-se perante os demais senhorios e Estados como centro eclesiástico e político da Europa. Ou melhor, da Cristandade. O Papa chega a ser por isso o maior “revolucionário” cristão da época, recebendo por isso apoio das franjas da ortodoxia, ou seja, dos que estavam perto da heresia, como os Patarinos de Milão (séc. XI, movimento contra a Reforma Gregoriana).

 

Pedro de Bruys

A partir de então, as heresias não são mais grupos retirados ou auto-isolados do mundo, silenciosos e ascéticos, mas antes grupos agressivos e fanáticos. Surgem nas regiões mais desenvolvidas da Europa a partir de 1100: Norte de Itália, Sul de França (Provença, Languedoc) e Flandres. Mais urbanizadas, eram também mais ricas estas regiões, além de muito povoadas, com populações mais cultas também. Surgem os pregadores itinerantes, os Pauperes Christi, ou “Pobres de Cristo”, como já vimos alguns casos. Os seus alvos não são apenas espirituais ou teóricos, mas físicos mesmo: presbíteros simoníacos (compra de bens eclesiásticos) ou nicolaítas (mancebia dos sacerdotes), prelados e sacerdotes considerados imorais ou menos disciplinados. A riqueza da Igreja é severamente criticada, num discurso (e acção) anticlerical radical. As pregações e críticas rapidamente caíam na heterodoxia, no desvio doutrinário: o caminho para a heresia era fácil e inevitável.

Um destes pregadores itinerantes, heréticos, foi um antigo sacerdote francês, Pierre (Pedro) de Bruys. Trajando hábito de peregrino, ou eremita segundo alguns, de pés nus e barbas longas, apresentava-se assim ao povo, numa figuração despojada e pobre. Pregava contra os edifícios das igrejas, a sua pompa ou decoração, fausto e grandeza. Fazia-o no adro de uma igreja, ou então numa taberna ou salão. Que se queimem as cruzes, nada de esmolas nem orações para os defuntos, nada de baptismo para as crianças e jamais a Eucaristia: assim bradava o pregador de Bruys. E muitos o ouviam. E seguiam. A única autoridade para ele eram os Evangelhos, nada mais. Nascia aqui um padrão, que facilmente se tornaria um desvio. Por serem tão fascinantes e modernos os Evangelhos…

A sua doutrina era radical, refutando o papel mediador da Igreja. A sua pobreza, vivida e apregoada, era tocante e muitos o seguiram por ela. E muitos, aceitando-o, deram corpo a turbas de gentes em fúria que destruíram, queimaram igrejas, altares, imagens, atacaram mosteiros e vandalizaram os bens da Igreja que pela frente lhes assomava. Chegaram a comer carne numa Sexta-feira Santa, assada num fogo alimentado de cruzes de madeira de igrejas… Os seus adversários não lhe deram tréguas, todavia: Pedro foi preso em St. Gilles, acusado de comportamento agressivo e heresia. Morreu na fogueira em 1132 ou 33. Os seus seguidores não desapareceram e continuaram, chegando a ser asperamente criticados por Pedro (o Venerável), abade de Cluny.

 

Evangelho e Pobreza

O Evangelho era cada vez mais a “cartilha” destes grupos. Outras heresias semelhantes à de Pedro de Bruys surgiriam no século XIII. Um antigo monge, Henrique, que conhecera os discípulos de Pedro de Bruys, deles tomou alguns pontos de vista e metodologia. Vagueou pelo Sul de França, pregando contra a Igreja como instituição, principalmente. Não admitia outra inspiração e forma de vida que não os Evangelhos. Desapareceu entretanto a partir de 1145, talvez embrenhado noutra heresia maior, a dos cátaros, de que falaremos mais tarde.

A Igreja reformara-se, consolidara-se com a Querela das Investiduras e na renovação plural com a fundação de várias ordens religiosas. Tornou-se mais independente dos poderes laicos e também mais centralizada no Papado, sem dúvida, mas também ficou cada vez mais poderosa. Mais rica e hierarquizada, diga-se ainda. Por isso os apelos a uma Igreja pobre e dos pobres, para os pobres eram cada vez mais fortes. O Evangelho da Pobreza era reivindicado por um crescente número de grupos ou movimentos, que a exigiam para os pobres, principalmente a partir de meados do século XII. As controvérsias nasciam como cogumelos, em frentes de debate e querelas que caíam rapidamente no domínio da heresia. De relativamente esporádicas nessa época, em finais do mesmo século eram já muitas e bastante disseminadas, além de bem organizadas e com um elevado número de discípulos, em crescendo de fanatismo.

Eram movimentos de pobreza voluntária, baseadas essencialmente na participação de leigos. Animavam-se de um escopo de retorno aos ideias de pobreza evangélica, para se distinguirem da renovação eclesiástica mais institucional. O alto clero, ou o clero mundano, simoníaco e concubinado, era cada vez mais o alvo desses grupos. Alguns redundaram em ordens religiosas, a maior parte delas extintas na voragem dos acontecimentos. Poucas sobreviveram, mas necessitando de reforma para tal. A hierarquia da Igreja era cada vez contestada, de forma polémica e combativa, violenta. A Igreja reagia declarando-os hereges. Estes, contra-reagiam então de forma mais radical e ousada, matando, pilhando, violentando. Arnaldo de Bréscia (1090-1155) foi o maior exemplo desse contexto. Antigo sacerdote, liderou um movimento que impunha à Igreja: a renúncia da sua riqueza e retorno à austeridade dos primeiros cristãos; o abandono do poder temporal; a não validade dos sacramentos administrados por clérigos indignos; a pregação por leigos; e a confissão praticada entre fiéis sem a necessidade de sacerdotes. Acabou condenado e morto na figueira, em Roma. Mas o seu exemplo e marca ficaram.

A segunda metade do século XII seria um período de tensão e ao rubro, entre Igreja e movimentos pauperístico-evangélicos, quase todos rotulados de heréticos. Estava a preparar-se um vendaval de heresias maior, que minou a autoridade da Igreja.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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