Cartas do Bornéu -11

As andanças do “Carvalhinho”

A este ponto da narrativa há um pormenor que merece particular atenção. Refiro-me ao mencionado “filho de Carvalhinho”, que teria cerca de oito anos de idade na altura em que foi feito refém e muito provavelmente passou o resto da vida na corte do sultão do Brunei. Ele foi, por assim dizer, o primeiro “brasileiro” a viajar para o Oriente e ali ficar.

Passo a explicar. Antes de ser alistado para a circum-navegatória tarefa, João Lopes de Carvalho era já piloto acostumado às correntes atlânticas, restingas e enseadas dessa nova terra prometida abundante em pau-brasil. Numa das viagens, em 1511, senhor do leme na nau Bretoa, Carvalho foi acusado pelo capitão de ter furtado alguns machados e, como castigo, largado em terra, algures no Cabo Frio. Mas Carvalho não desesperou. Tratou logo de conhecer uma mulher tupi com quem aprendeu o idioma local e teve um filho. Partiria mais tarde para o reino e depois para Sevilha onde acabou por ser recrutado para a viagem de que tanto se falava, pois era excelente conhecedor das manhas dos oceanos cuja interligação faltava comprovar. Já no decorrer da expedição, aquando da estada na formosa baía do Rio de Janeiro, reencontra mulher e filho e tenta embarcá-los na nau que pilotava. Magalhães autoriza o menino mas não a mãe, pois uma presença feminina a bordo certamente traria problemas no futuro.

A juntar a este episódio há ainda um outro em que Carvalhinho surge como actor principal. Neste caso, tanto Pigafetta como Correia coincidem na informação divulgada. O primeiro diz-nos que na sequência do ataque ao junco retiverem a bordo dezasseis homens, dos mais notáveis da ilha, e três mulheres que planeavam levar para Espanha “como presente para a rainha”, mas que João Lopes de Carvalho, para espanto e descontentamento geral, “guardou para si próprio”. Ora tais mulheres, a julgar pela prosa de Gaspar Correia, fariam parte do dote do capitão-geral do Lução, pois este, uma vez conquistada Lahout, preparar-se-ia para casar “com uma filha do rei de Bornéu”, daí a razão de ser das “coisas de ouro e pedraria” que “trouxera para suas bodas”. As ditas “moças de estremada formosura” deixaram embevecido o nosso Carvalhinho e certamente lhe fizeram lembrar a índia tupi abandonada na costa brasileira. Sem papas na língua, Correia afirma que João Lopes “em vez de as levar ao imperador dormiu com elas”, despertando assim a fúria dos castelhanos “que estiveram para o matar” não fora o português tê-los dissuadido com uma generosa oferta – “ele partiu com os castelhanos tão largo que foram amigos”, é esta a expressão utilizada pelo escriba. Pelos vistos, Carvalho terá sugerido ao noivo que “com os seus fugisse de noite” a nado e, a troco disso, ele “lhe dera muita riqueza de pedraria”. Correia fornece ainda uma outra informação, contraditória ao anteriormente afirmado. Diz que o português “fez que dormia e acordou queixando-se com os da vigia”, mas os castelhanos entenderam a manha “e tomaram o Carvalhinho e o prenderam em ferros, e lhe tomaram quanto tinha e alevantaram por capitão a um João Baptista, mestre da nau, porque sabia de piloto”. Nada disto é mencionado no texto de Pigafetta.

Apesar de todas as tropelias e rocambolescos episódios por ele protagonizados, João Lopes de Carvalho (tal como Sebastião Elcano) não é tido nem achado nas informações históricas fornecidas aos visitantes do sultanato do Brunei, continuando apontados todos os holofotes para a figura de António Pigafetta, de certo modo espião involuntário pois faria chegar às mercantis cidades-Estado da Península Itálica informações preciosas. Diz-nos o italiano, nativo de uma região vizinha a Veneza, que os habitantes do reino andavam nus, “como é hábito entre os povos destes climas”, adoravam Maomé e seguiam a sua lei. Por essa razão, não consumiam carne de porco, lavavam o rosto apenas com a mão direita, nunca esfregavam os dentes com os dedos e não ingeriam carne de animal algum que não tivesse sido morto por eles mesmos. Diz-nos ainda que cortavam as pontas das asas às galinhas e não as matavam, nem às cabras, “sem antes reverenciarem o Sol”, certamente um resquício de antigas práticas animistas.

Refere o cronista, a respeito dos assuntos do comércio, serem os produtos mais procurados pela gente daqueles portos o cobre, o mercúrio, o cinabre (de cor avermelhada, devido ao óxido de mercúrio), os panos de lã, as lonas e “sobretudo, o ferro e as lunetas”, chamando a atenção para a circulação de uma moeda de bronze chinesa de baixo valor, “tendo num dos lados quatro caracteres correspondentes ao grande rei da China”, perfurada no meio para assim poder ser agrupada em fiadas, e que os portugueses designavam de “caixas” ou “sapecas”.

Do rei do Brunei dizia-se que guardava, como de um tesouro se tratasse, “duas pérolas do tamanho de um ovo de galinha”, tão redondas que ao ser colocadas no tampo plano de uma mesa continuamente se moviam. Quando lhe levaram os presentes, os ibéricos fizeram saber ao monarca que as gostariam de ver mas ele, apesar das promessas, nunca lhes satisfez o desejo.

Joaquim Magalhães de Castro

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