Mito e realidade
Para muitos autores, principalmente a partir do Renascimento, a aproximação do ano Mil foi um tempo de medo. Hoje em dia, todavia, os historiadores tendem a minimizar esse clima de pânico generalizado. Ou seja, houve um exagero de interpretação. Na mesma linha que coloca a Idade Média como uma época de trevas, de gente em grutas, de retrocesso civilizacional. O texto do Apocalipse possui trechos, como vimos, que se prestam a atordoantes e contraditórias interpretações.
Já Orígenes, historiador cristão dos primeiros séculos, advertia que tais textos se tornariam perigosos na boca de aproveitadores e oportunistas, com grande ascendência sobre os crentes, podendo por isso provocar resultados inesperados e perigosos, alimentando fanatismos de toda ordem. Tudo isto somado ao carácter mistérico e emblemático da data milenar, criou cenários apocalípticos e de terror. Mas mais em muitos historiadores do Renascimento do que antes do ano Mil, na realidade.
Houve medo, temor. É verdade, houve, como já vimos. Mas não numa escala apocalíptica e demencial colectiva, generalizada. O mundo não acabou. A Igreja, em período de formação da Cristandade, apesar das polarizações e divisões entre Oriente e Ocidente, foi o elemento mitigador de todas as radicalizações, o temperador de extremismos e o eixo civilizador que previu e preveniu escaladas de terror. Deu respostas à altura e soube serenar, disciplinar e orientar. Em verdade se diga. O diabo não foi alforriado nem os mortos vieram do fundo do abismo. O mundo seguiu a sua velha marcha de vida.
A versão de que ocorrera um pânico colectivo no fim do primeiro milénio, que tivesse varrido de uma só vez toda a Cristandade inteira, nunca se confirmou afinal. A investigação histórica feita por alguns consagrados medievalistas europeus, primeiro por Marc Bloch e depois por Georges Duby, assim o demonstra. Estes historiadores franceses suspeitam que boa parte das narrativas de turbas populares enlouquecidas de medo, de multidões reunidas nas igrejas orando e suplicando, com velas na mão, freneticamente pedindo perdão, espezinhando-se e lutando sofregamente por tocar em relíquias taumatúrgicas e salvíficas, foram, afinal, exageradas.
Resultaram em parte, segundo os historiadores, de lutas ideológicas no Renascimento, retomadas mais tarde pelos autores ilustrados (Iluminismo) no século XVIII, que queriam destacar o inferno psicológico e mental em que vivia o homem medieval, subterrado pela superstição e pelos espectros fantasmagóricos do outro mundo, tudo isto acrisolado pela escatologia apocalíptica dos textos bíblicos.
Quanto mais negros fossem os tempos da época medieval, mais brilhantes pareceriam, em contraste ou por oposição, os tempos modernos, a idade do Renascimento e depois o Iluminismo. Era uma forma aliás de crítica velada, mas nem sempre, da Igreja e de uma anestesiante influência sobre o povo, cego pela crença e destituído de Razão. Como que a afirmação da importância ou das reformas do Cristianismo a partir de Lutero ou do primado da Razão e a falência da Igreja, que na Idade Média afinal só teria conduzido os crentes ao fanatismo. Hoje em dia a historiografia moderna, científica, destrona essa leitura ideológica e catastrofista dos historiadores dos séculos XVI-XVIII. Houve terror, medos, sim, mas não na escala ou difusão maciça “inventadas” pela linha historiográfica revisionista acima citada.
O MILÉNIO ESCLARECIDO
Muito do que hoje se ensina nas escolas e veicula na opinião pública e publicada sobre o Renascimento, Humanismo e Iluminismo, por exemplo, tende a filtrar a verdade histórica e a focá-la apenas num sentido, esquecendo que havia outros valores e formas de ver o mundo. Por isso, se criou um pouco o “mito do milénio”, ou do ano Mil. Já o aqui vimos, mas importa hoje focá-lo livre de preconceito ou visões estreitadas e maniqueístas. O Humanismo e o Renascimento, sem qualquer desprestígio ou redução de valor e escala de importância, difundidos pelos sábios e artistas – através do renascer da importância da cultura pagã greco-romana, clássica e racionalista – pretenderam acima de tudo esvaziar a Cristandade, o sentimento religioso do mundo ocidental, logo a Igreja e os seus valores. “Inventaram”, para criarem opostos, à boa maneira platónica, fantasmas do Além, redimensionaram bestas descritas no Apocalipse e tudo colocaram no fundo baú da imaginação das populações da Idade Média, em particular antes do ano Mil. Obscurantismo sempre existiu, mas por vezes ao ponto de filtrar a história e obscurecer tempos que não o foram assim numa perspectiva tão apocalíptica.
É importante recordar também a imprecisão dos calendários cristãos. Estes não eram muito precisos (objectivos) naquela época, datando muitos deles de pontos de partidas distintos (na Espanha, por exemplo, acreditava-se que o “ano zero” se deu em 38 a.C.). Por isso as autoridades escolheram datas diversas para assinalarem a chegada do milénio e a data do Fim do Mundo. Marc Bloch calcula que chegaram a 6 ou 7, começando entre 25 de Março de 999 e indo até 31 de Março de 1000. Um exemplo de inexactidão que por vezes trazia dissabores. As crises do medo, ao invés de se darem num só momento, manifestaram-se em ondas e por largo tempo, variando de região para região, mas seguramente não provocando mais desespero e histeria do que durante a Peste Negra do século XIV (1347-50). Por isso não se pode falar num terror generalizado numa época, antes focos e espalhados. Uma tempestade violenta ou a notícia da destruição do Santo Sepulcro ocorrida em 1009, por exemplo, bastavam para que a turbulência se gerasse. Tudo poderiam ser sinais da catástrofe. Mas sem sempre as catástrofes sucederam.
Para mais, os registos eram pouco, as fontes que usamos hoje. Feitas por clérigos, as informações que temos são pois de sua lavra. Os poderes, a hierarquia eram os mais relatados, não o povo, a grande massa de gentes. Por isso, não podemos também aferir comportamentos colectivos só por suposição ou ideologia. Ou por analogia… O vale de lágrimas que era a terra, antecâmara das delícias da eternidade celeste ou dos horrores das profundezas do inferno dos condenados, em toda a sua materialidade e registo quotidiano não eram ainda muito descritos pelos clérigos. É assim forçado acreditar-se numa espiral violenta e universal de apocaliptismo, além de que é importante pensarmos na existência da Igreja, não apenas um farol luminoso mas a luz que guiava o mundo. Que existe desde sempre…
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa