Lustres de bacará e madeira de cotumuju
O dia seguinte volta a estar cinzento. Da varanda do meu quarto dormitório vejo os vendedores de rua a pendurarem quadros nos gradeamentos e a montarem as suas bancas improvisadas. Por volta das dez da manhã – mas nunca antes – a Alfredo de Brito é já um imenso expositor de arte e de artesanato. Não admira que assim seja. Percorrem essa rua todos os turistas que visitam o centro histórico, já que ela desemboca directamente no Pelourinho, caracterizado pelo casarão azul que aloja a Fundação Jorge Amado, provavelmente o mais conhecido dos baianos, se bem que seja algo arriscado fazer uma afirmação destas. Há vários pretendentes ao ceptro, seja na música (Gilberto Gil), seja na literatura (Castro Alves).
No Pelourinho eram castigados, indiscriminadamente, escravos e criminosos. O que ali existia, desde 1807, mesmo em frente ao casarão azul, foi retirado em 1835. Recentemente instalaram no local uma obra de arte, uma figura humana estilizada, feita com ferro retorcido. Ironicamente, nas imediações têm a sua sede a Casa do Benin e o Centro Cultural da Nigéria, instituições representativas das culturas do Golfo da Guiné, de onde era traficada a mão-de-obra que construiu o Brasil.
COMPRAR O PARAÍSO
Aproveito a manhã para visitar os interiores dos sítios patrimoniais que me trazem aqui.
A fachada do Mosteiro da Venerável Ordem Terceira de São Francisco, ramo secular dos franciscanos, chama a atenção pela variedade de motivos rendilhados em pedra. Geométricos, florais, antropomórficos.
Austera, recolhida num nicho, a estátua de São Francisco segurando uma caveira lembra-nos da caducidade das coisas terrenas. Daqui avistam-se as torres ladrilhadas da igreja adjunta, entregue aos cuidados dos frades franciscanos. Mas a ela já iremos a seguir.
O museu desta Ordem secular integra o Roteiro dos Museus do Centro Histórico de Salvador da Baía. Está aberto de segunda à sexta, das oito da manhã às cinco da tarde e a entrada custa três reais. Acessível, portanto, a toda gente.
Um corredor conduz ao claustro principal, mas antes disso chama-me a atenção uma sala de paredes azuis com várias estátuas, entre as quais a de São Luís de França e de um beato negro chamado António de Loures, também ele francês, ao que consta, e que muita gente confunde com São Benedito.
O claustro é dominado por um belo relógio solar e painéis de azulejos que retratam a cidade de Lisboa antes do terramoto de 1755. É, porventura, o conjunto pictórico mais importante da época. Infelizmente, muitos desses azulejos estão bastante danificados e o trabalho de recuperação iniciado pela Fundação Calouste Gulbenkian parece ter sido interrompido. Disso se queixa Raimundo Couto, o encarregado do património pertencente à irmandade.
Os painéis mostram-nos o dia-a-dia no rio Tejo – os barinéis, os batéis, embarcações a remos e à vela e naus de três mastros, com pavilhões portugueses e holandeses – e na zona ribeirinha, enquadrada pelas colinas da cidade, edifícios com tectos cónicos, coches, grupos de nobres, membros do clero, a tropa com os chuços e as lanças em riste, o Arco dos Ingleses e o Arco dos Medeiros, o Palácio do Conde de Eiras e, em primeiro plano, as escadinhas de acesso ao Castelo de São Jorge. Vê-se também a Torre de Belém e, ao seu lado direito, um edifício quadrangular com quatro torres cónicas e uma escadaria frontal. No terreiro adjacente está em parada um batalhão do exército tendo como pano de fundo uma igreja e um mosteiro que só pode ser o Mosteiro dos Jerónimos.
No chão de mármore do claustro estão enterradas famílias ilustres, como se pode comprovar pelas lápides informativas: “Jazigo perpétuo de Mário Jorge de Mattos e sua família, 1931”; “Jazigo perpétuo da Família Manso, 1919”; e por aí adiante. Os irmãos da Ordem iam sendo enterrados aqui até meados do século XX, altura em que a municipalidade interditou essa prática. Mesmo os monges, ao contrário dos beneditinos do Rio de Janeiro, não estão mais autorizados a fazê-lo. A eles é-lhes reservado um ossário, numa espécie de cave iluminada por janelas enfileiradas com rebordos de granito.
«– Um dos estratagemas utilizados pelos mais ricos era fazerem-se enterrar nas igrejas, pois acreditavam que assim subiam directamente ao Paraíso», comenta a propósito Raimundo.
MOSTEIRO-MUSEU
Numa das salas interiores os painéis azulejados reflectem a vida monástica dos monges franciscanos, ora nos seus afazeres diários, ora nas suas orações. Nalgumas das paredes os azulejos parecem ter sido colados ao calha, o que produz um efeito bastante artístico. Representam cervos, coelhos, motivos florais, habitações, barcos, pessoas. Nos azulejos da escadaria de acesso ao primeiro andar as cenas são de caça, com homens e javalis, lanças e armas de fogo. A dominar o panorama, um retrato do coronel Domingos Pires de Carvalho, “ministro que foi desta venerável Ordem”.
A antiga sala de reuniões da directoria da irmandade tem uma gigantesca mesa e cadeiras em madeira de jacarandá da Baía.
«– Este tipo de jacarandá distingue-se dos restantes por ser de cor castanha, com veios negros em vez das habituais tonalidades amarelas e avermelhadas», informa Raimundo, chamando-me ainda a atenção para os lustres de bacará e o soalho de madeira de cotumuju, uma árvore da região da Baía actualmente em risco de extinção.
As pinturas do tecto, que retratam cenas bíblicas, obrigam-me a posturas de ginasta para me inteirar dos pormenores. Junto à antiga casa forte, Raimundo exclama:
«– Está vendo o tamanho destas chaves? Para roubar tinha que ter dois, um sozinho não roubava».
As portas foram reforçadas com chapas de ferro, para defesa dos ataques dos piratas franceses e holandeses que assolavam as costas do Brasil.
«– Tem 170 anos e não tem uma ferrugem», refere o baiano.
Mais conjuntos de azulejos decoram a antiga e faustosa sala de reuniões. Também eles representam a Lisboa que existia antes do devastador terramoto. «– No mundo todo só tem aqui», conclui Raimundo. Já o altar em miniatura ali próximo, «é uma cópia fiel do altar da Igreja de São Francisco, só que dez vezes menor».
Não querendo monopolizar o tempo de Raimundo, desço ao rés-do-chão decidido a apreciar melhor a actual sala de reuniões da directoria onde uma sessão acaba de ser liderada por um homem já idoso, português, que, ao contrário de Raimundo, não é atencioso nem se mostra minimamente interessado neste seu compatriota que aqui está para abalizar a dimensão e importância do património da instituição franciscana.
Na sala há um alto-relevo muito curioso que se destaca de um conjunto de azulejos rentes ao solo. É de mármore avermelhado, tem motivos florais e faz lembrar uma pia baptismal. No centro, um escudo português e dois anjos cupidos assexuados que seguram uma coroa real onde está escrito o seguinte: “Em 1870 reformou Hermogenes”. Dois banquinhos de pedra de liós junto a uma janela ali próxima fazem lembrar os banquinhos dos castelos ou palácios onde as donzelas se sentavam para poderem ver passar o mundo, na rua em baixo.
De regresso ao primeiro andar, junto-me a três turistas italianos que agora recebem as explicações de Raimundo, sempre solícito e bem-disposto.
Seguimos por um corredor repleto de esculturas dos séculos XVIII, XIX e XX.
«– São as ofertas dos irmãos», informa. Trata-se de estatuetas de santos e do Menino Jesus em todos os materiais e de todos os tamanhos e feitios. Há ainda relicários, oratórios, estandartes, andores, paramentos sacerdotais de diversas épocas, muito bonitos e extremamente coloridos, uns mais kitsch do que outros, todos eles protegidos por detrás de vitrinas ou dentro de redomas.
Os oratórios eram utilizados pelas famílias ricas que moravam nas fazendas do interior e que não tinham igrejas próximas. Sempre que necessário, serviam de altar em redor do qual se celebravam missas, baptizados e até casamentos.
«– Se olhar bem – alerta Raimundo – pode ver a figura da Senhora do Bonfim e a do Menino Jesus, as divindades mais veneradas no nosso Estado».
De toda esta estatuária destaca-se um Cristo crucificado com uma fita vermelha pendurada (simulando o sangue derramado) com um São Francisco ajoelhado a seus pés.
«– Na antiga Procissão das Cinzas, antes de haver Carnaval no Brasil, cada irmandade procurava mostrar o seu poderio económico e, por isso, todos os anos faziam estátuas diferentes. Muitas delas eram imagens de Cristo à escala humana, como esta», diz Raimundo, mostrando-me depois uma pequena imagem de Santo António: «– Olhe as mãos, os pés e o rosto como têm a proporção exacta. Parece estar a voar. É a estátua mais perfeita que conheço. É de gesso, se fosse em madeira o seu valor seria incalculável».
Ao lado vejo duas varas de prata para segurar os andores. «– Estão feias e sujas e assim devem continuar», comenta Raimundo. Não as limpa pois se o fizer a prata corrói-se. «– Sabia que a poeira preserva os metais preciosos?».
Um dos italianos parece intrigado com o soalho que pisa. «– Demanda lei que legno é?», pergunta ele à colega que pesca um pouco de Português. E Raimundo, face ao pedido, repete o episódio das pranchas de raríssima madeira de cotumuju, que nem sequer rangem apesar de terem mais de duzentos anos. Fornecida a informação aos transalpinos, vira-se para mim e confidencia:
«– Quero passar todas estas peças para o andar de cima, que está presentemente em obras. A ideia é tornar este museu mais digno».
Joaquim Magalhães de Castro