Caminhos do Brasil

O sonho de Robson Mendes Azevedo

No interior da igreja de Congonhas, à semelhança das igrejas de Ouro Preto, existem admiráveis retábulos de talha, pinturas setecentistas e diversa estatuária dos mestres mineiros Jerónimo Félix Teixeira e Manuel da Costa Ataíde, ambos companheiros de lides do Aleijadinho. O portal do santuário, de pedra sabão, é um elaborado conjunto escultórico de estilo rococó, ao estilo das igrejas de Minas Gerais.

Nas lojas de artesanato não faltam namoradeiras (bonecas que se expõem à janela, imagem de marca do turismo mineiro) panelas de pedra, “preços de fábrica em panelas de pedra sabão a partir de doze reais”, e colecções dos doze profetas em pedra sabão, mas em miniatura.

Nalguns desses estabelecimentos grava-se e pinta-se na hora, em pedra e madeira, tudo o que o cliente desejar, e está assegurada a “fabricação própria de mensageiros do vento” e a venda de relógios e diversa bijutaria, “por atacado e varejo”. Uma loja, mais original, lança um apelo: “venha conhecer o retrato do Aleijadinho. O génio mestiço, o artista mineiro: António F. Lisboa”.

Ricardo empenha-se ao máximo, dando-me todo o tipo de informações a respeito do que vejo e do que não vejo, mas confesso que a minha maior preocupação é o registo de imagens. Assim que o sol dá um ar da sua graça, sempre nesse seu irritante jogo do esconde-esconde com as nuvens ameaçadoras, percorro o arraial fotografando tudo o que mexe, já que daí a menos de uma hora temos de partir para Belo Horizonte.

Também em Congonhas não se avista um único turista estrangeiro, embora fosse de esperar mais gente neste recanto que merecidamente detém o título de Património da Humanidade.

 

LAGOA SANTA

À saída, registo o curioso nome Socorro Profeta dado a um Serviço de Guincho, que é o mesmo que dizer oficina de reparação de automóveis. Depois, é o retomar de uma paisagem caracterizada pelas minas de extracção ao ar livre, extensos vales, uma descida prolongada logo seguida de um viaduto perigosíssimo a precisar de urgente mudança de trajecto. Não admira o elevado grau de sinistralidade aqui registado. Ao longe, para leste, avista-se um pico montanhoso que se destaca da paisagem ondulada. Eram picos deste género que serviam de ponto de referência aos pioneiros bandeirantes que lhes dariam nomes que ainda hoje perduram.

Chegamos a Belo Horizonte já ao anoitecer. Ou melhor, chegamos aos subúrbios de Belo Horizonte, porque para atingirmos o outro lado do centro financeiro, temos ainda de atravessar todo um mundo de favelas. Os seus habitantes, mulheres, idosos e crianças, todos eles, sem excepção, negros, ignorando as passagens aéreas, fazem tentativas suicidas para atravessar a movimentada estrada. Uma verdadeira roleta russa.

Filas intermináveis de carros regressam de um dia passado fora da cidade. Regressam de Lagoa Santa – a afamada lagoa da miraculosa água descoberta no século XVII que foi levada para Portugal e que durante a viagem perdeu as suas propriedades medicinais – e do Parque Nacional da Serra do Cipó, o caminho para Diamantina, outro importante centro mineiro, terra de cascatas, vales, antigos caminhos construídos por escravos, e de uma das maiores biodiversidades de continente americano.

 

Coragem

Desta vez são mais de mil e trezentos quilómetros até ao Rio de Janeiro que, ao contrário do que apregoa a canção, não deve estar nada lindo, ou muito me engano. As previsões meteorológicas anunciam o pior.

É meu companheiro de viagem Robson Mendes de Azevedo, um rapaz que ambiciona ser jogador de futebol americano. Fala-me dos amigos e das amigas que vivem em Portugal, especificando que eles «estão na prostituição», como se essa fosse a mais normal das actividades.

Lá fora são muitos os campos de soja, presumo que maioritariamente de cultivo transgénico, para desgraça da nossa saúde, e os respectivos silos, propriedade da americana Cargill e das brasileiras Maeda e Caramuru.

«– E Portugal, tem disso aí?», pergunta Robson, despertando-me das minhas cogitações, quando vê uma unidade da Wal Mart.

É que ele trabalhou nos States, numa dessas unidades e garante que pagam bem. Mas esse não é o seu sonho. O seu sonho é que um dia Stan Lee, da Marvel Comics, divulgue um super herói que ele criou. Isso e, claro, poder um dia jogar futebol americano. Semelhante ensejo nada teria de especial se não fosse o facto de este jovem ter ambas as pernas destroçadas pela poliomielite. Força aí campeão! Ter vontade é já meio caminho andado.

Robson fala-me também dos benefícios de saúde para os cidadãos desde que o Governo de Lula garantiu o rendimento mínimo. Pelo aparelho que tem nos dentes (para os embelezar, não para os endireitar) pagará «apenas cinquenta e cinco reais por mês», ao longo de três anos. É impressionante a quantidade de brasileiros, sobretudo jovens, com aparelhos nos dentes sem que haja necessidade óbvia para os utilizar.

Nas viagens de longo curso por este imenso Brasil questiono-me sempre acerca da necessidade dos atalhos que as camionetas frequentemente tomam. São também inexplicáveis as paragens constantes a meio da noite que nos acordam se por acaso logramos adormecer. Qual a razão desta paragem, por exemplo, madrugada funda, num desses locais perdidos no mapa? Que diabo foi fazer o motorista e por que razão desligou o ar condicionado?

 

RODOVIA TROPEIRA

Tomamos o pequeno-almoço numa enorme sucursal da Graal, já em plena Rodovia Tropeira. Lembro-me de termos atravessado ontem, ao cair da noite, o Rio Grande, que é realmente grande. Agora, na curva contra curva acompanhamos um outro curso de água lamacenta pois a manhã apresenta-se chuvosa. Ouço dizer que o temporal provocou novas cheias no Sul do País. Ironicamente, a mancha verde que percorremos é inteiramente constituída por eucaliptos, essa árvore que tudo seca em seu redor.

O limite de velocidade é de 110 quilómetros horários e entre os milhares de veículos pelos quais cruzamos chamam-me a atenção os camiões da empresa White Martins e os da congénere Guerra que tem o curioso mote “Guerra leva a paz à estrada”. Os autocolantes em muitos deles alertam os possíveis candidatos a assaltantes para o facto de o veículo estar a ter “rastreamento via satélite”, embora, muito provavelmente, o aviso não passe de uma simples e inofensiva ameaça.

Homens que cortam relva na berma da estrada, que é já início de mata, é um bom exemplo da inutilidade, ou melhor dizendo, da pouca utilidade de alguns serviços públicos.

Entre as curiosidades lexicais do dia destaco uma Usina Frutal e uma Fábrica de Combustível Nuclear para Fabrico de Energia Eléctrica.

Realidade bem diversa, as muitas estações ferroviárias desactivadas com que deparo deixam-me espantado. Que pena não se apostar verdadeiramente na via-férrea neste imenso país!

O anúncio ao Motel Chips é, no mínimo, original. Mostra-nos o corpo de uma mulher nua deitada na cama acompanhada da frase “concentre-se nas curvas”. O Motel Chips é um conjunto de casinhas simpáticas, com “descontos para viajantes”, do qual se destacam uns painéis de azulejos com caravelas quinhentistas. Não me admirava nada que o dono fosse português. Tal como o Sines Motel, uns trezentos metros adiante (porventura outro investimento luso), também o Motel Chips dispõe de serviços de hidromassagem e sauna.

Segue-se uma série de fazendas com produtos da roça, coelho, queijo e rã e comida mineira “na panela de pedra”. Na fachada de uma delas, uma bonita casa colonial de cor amarela, vislumbro um anúncio à cerveja Cintra. Será este mais um dos investimentos do Sousa Cintra, homem com muitos e variados interesses no Brasil?

Seja qual for o seu teor ou proveniência, são sempre bem-vindas as ofensivas contra o poder dos refrigerantes e das hamburguesas que tantas vezes suplantam a tradicional e deliciosa “comida campeira”, como dizem por aqui.

Joaquim Magalhães de Castro

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