O Oriente como vocação
Em 1955, dez anos após a independência da Indonésia, a explosiva situação política no arquipélago – persistia o braço de ferro do Presidente Sukarno com a ex-potência colonial Holanda, senhora ainda de um grande troço da Papua, hoje Irian Jaya – cessaria o habitual fluxo de missionários neerlandeses que em breve seriam substituídos pelos congéneres alemães “da província do Sul”, uma das três províncias pastorais da Alemanha. Estávamos em finais de 1957 e entre as duas dezenas de padres enviados para o Oriente nos anos subsequentes constava o hoje conhecido Franz von Magnis, SJ, incansável paladino do diálogo inter-religioso entre Oriente e Ocidente.
O nosso entrevistado, Bernhard Kieser, SJ, integrou a última leva de religiosos teutónicos. «Na altura, 1963, em toda a Indonésia existiam apenas 190 jesuítas», informa. Actualmente, dos trezentos jesuítas activos no País seis são estrangeiros: «cinco alemães e um norte-americano».
Bernhard estudou Teologia em Yogjakarta e em 1968 foi ordenado padre, tendo exercido trabalho pastoral entre 1969 e 1970. Efectuou depois um breve regresso à Europa para a conclusão do doutoramento, em Frankfurt, «mero formalismo pois todos os meus estudos foram feitos na Ásia». Influenciado pela obra de Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíço-americana, autora do livro “On death and dying”, escolheu como tema para a sua dissertação académica a questão da ética cristã, «fértil matéria de estudo, como pode imaginar». De regresso a Java, em 1973, passou a integrar o corpo docente da Faculdade de Teologia da Universidade de Sanata Dharma, instituição de ensino católica, tendo para isso que optar pela nacionalidade indonésia. «Na qualidade de estrangeiro não o podia fazer», informa, «e como a Indonésia não reconhece a dupla nacionalidade tive de abdicar da minha própria». Afinal, Bernhard Kieser seguia, em termos profissionais, os passos dos pais, ambos professores.
Nascera em Bruchsal – «o maior centro produtor de espargos da Europa». Bruchsal, que em Alemão significa campo cultivado num pântano, «está na origem do nome Bruxelas», informa o nosso interlocutor em jeito de curiosidade. No remoto ano de 1056, Henrique III da Alemanha presenteara esse burgo – já com igreja, castelo, palácio e moeda cunhada – ao bispo de Speyer (mais tarde Konrad I) e à Diocese ficaria ligado até ao início do Século XIX.
«O meu avô, natural de uma aldeia vizinha, era carpinteiro. Foi ele quem construiu a prisão da cidade». Por sinal, um dos únicos edifícios a sobreviver a um devastador bombardeamento durante a Segunda Guerra Mundial. A 1 de Março de 1945, poucos meses antes do fim do conflito, 116 aviões descarregaram sobre Bruchsal toneladas de bombas provocando a morte de mais de um milhar de habitantes. Uma carnificina desnecessária (à semelhança de Hiroxima e Nagasáqui) pois nessa altura estava já decidida a guerra. «A linha de frente encontrava-se apenas a vinte quilómetros dos limites da cidade e não havia quase ninguém para defendê-la», lembra o sacerdote. «Ainda hoje esse bombardeamento incomoda os moradores… Há quem diga que foi retaliação pela morte de um piloto norte-americano, que se tinha injectado de páraquedas do seu avião abatido, por agricultores locais», diz. Além das vidas ceifadas nesse dia, todo o centro histórico de Bruchsal foi destruído. Um mês depois entravam na cidade em escombros as forças francesas, «ao que consta responsáveis por inúmeras violações entre as mulheres locais». Bernhard tinha então sete anos e recorda-se bem dos dias que passou encerrado numa cave com a avó, a mãe e a irmã mais nova. O pai desde 1938 – «o ano em que nasci» – fora alistado compulsivamente no exército e só de tempos a tempos vinha a casa. «Era professor no exército». Sobreviveu ao conflito mas foi feito prisioneiro pelos russos e enviado para um campo de detenção no Mar Negro. «Depois da guerra a escola de Bruchsal ficou sem professores pois todos eles eram membros do partido nazi», comenta Bernhard.
A sua aproximação aos jesuítas deu-se no pós-guerra e o desejo de missionar surge por influência de um colega que pretendia ir evangelizar na Coreia. Perguntar-lhe-ia um seu superior se Bernhard estava preparado. E como este lhe respondeu afirmativamente, replicou: «E irás! Não para a Coreia, mas sim para Indonésia». Foi uma partida em duas etapas. A primeira, em Génova, pronto a embarcar num paquete que o levaria até Batávia, via canal do Suez. Porém, devido aos problemas políticos da época (recorde-se que Sukarno almejava criar uma Grande Malaia, que incluísse não só a Indonésia mas também as ainda britânicas Malásia e Singapura, «e até as Filipinas»), a viagem seria cancelada. Só meses depois, agora com um bilhete da KLM na mão, regressaria a Itália. Roma, desta feita, onde presenciaria a segunda sessão do Concílio do Vaticano. Ficou impressionado com «as centenas e centenas de bispos» reunidos na Praça de São Pedro e teve até oportunidade de cumprimentar o Papa Paulo II. «Eu envergava já trajes próprios para o clima tropical. Presumo que tenha sido esse meu aspecto exótico que chamou a atenção da Sua Santidade e o levou a vir dar-me um aperto de mão».
Em Semarang estudou Javanês e Bahasa e só depois foi ensinar para Muntilan, perto de Borobudur, onde tinha sido estabelecido o primeiro colégio de jesuítas. Foi uma época bastante difícil pois tinha de dar aulas em vários locais numa vasta área, deslocando-se de bicicleta sujeito aos humores das intempéries tropicais. Resultado: adoeceu com gravidade e foi internado no hospital. Pouco depois, recebia e visita do vice-provincial. «Aquela visita impressionou-me positivamente. A partir de então percebi que pertencia a esta comunidade; que esta era definitivamente a minha casa. E aqui fiquei», conclui.
Joaquim Magalhães de Castro