Bengala e o Reino do Dragão – 52

A fuga fluvial

O sucesso do ataque mogol a Hugli era só uma questão de tempo. Não obstante, os portugueses, apesar de muito desfalcados, guardavam na manga uma derradeira cartada. Os bombardeamentos cerrados e contínuos da artilharia inimiga tinham miraculosamente poupado a maior parte da frota fluvial da cidade, o que permitiria ao residentes airosa evacuação, rio abaixo, até perto do delta, longe do alcance das armas dos homens do vice-rei mogol. Aí chegados, a qualquer uma das várias ilhotas cravadas na parte mais ancha do Hugli, ficariam seguros, pois os mogóis não tinham nem os navios nem a habilidade marítima para os desalojar. Cedo se aperceberam os portugueses de Bengala ser essa a única forma de salvarem a pele. Mas tal decisão implicava o abandono de todos os seus pertences, à excepção do vil numerário. Só que o colaboracionista Martim de Melo estava à cuca e, adivinhando os movimentos dos compatriotas, correu a avisar os mogóis. Estes, numa medida de antecipação, em três tempos montaram uma ponte com barcaças a unir as duas margens do rio e no local onde este era mais estreito “estenderam uma grande corrente de ferro”. Bem atestados de pólvora os canhões, faltava só cavar as trincheiras em ambas as orlas ribeirinhas onde se posicionariam mosqueteiros e arqueiros.

A 24 de Setembro, a coberto do breu da noite, embarcavam secretamente os sitiados em catorze barcaças e um número indeterminado de batéis de carga equipados com lantacas amovíveis acopladas às amuradas, “peças pequenas mas mais mortíferas do que um bacamarte”, na feliz expressão do nosso jesuíta. Seriam ao todo uns 250 portugueses (um cento deles mulheres), reinóis ou mestiçados, isso pouco importava, pois tal destrinça nunca fora ali praticada. Acrescia ao algarismo os muitos indianos e escravos que tinham logrado escapar, uns três mil no total.

Certamente devido a um erro de cálculo, a madrugada veio surpreender os fugitivos antes de estes levantarem as âncoras das suas naves. Seguir-se-ia uma das mais espantosas evacuações de que há memória! Ao aperceber-se da saída dos bravos defensores de Hugli, ou seja, dos homens de armas válidos, a tropa mogol entrou de rompante na cidade com grande algazarra e demonstração de bravura. “Fizeram-no como se tivessem encontrado pela frente tenaz resistência”, comentava com amarga ironia o padre João Cabral. Na verdade, abismal era a disparidade de forças entre as partes envolvidas na contenda.

No rio, o inimigo dispunha de 550 barcos de vários tamanhos, e em terra – assegurava Cabral – uma tropa de cem mil efectivos, muitos deles acoitados nas trincheiras cavadas nas margens ao longo de 25 milhas. Todos os canhões apontavam para o rio, na altura com baixo nível das águas devido à fraca monção, e o vento contrário fustigava em sentido contrário o pano dos barcos em debandada. Não podia ser mais exasperante o panorama. Para os aniquilar de vez os mogóis tinham preparado uma formidável arma de guerra: uma jangada-bomba constituída por seis embarcações cheias de lenha, piche e pólvora, atadas umas às outras. Contudo, um grupo de portugueses conseguiria abordar o engenhoso dispositivo e eliminar os seus ocupantes antes que estes lhe pusessem fogo. Não só o desactivaram como o arremessaram contra o pontão destruindo-o, e abrindo assim a desejada passagem. Esta operação prolongou-se ao longo do dia, pois os mogóis pareciam mais concentrados na pilhagem da indefesa cidade do que no ataque propriamente dito. Apesar disso, Manuel de Azevedo não conseguiu que a sua flotilha passasse pelo pontão tirando partido da noite e, na manhã seguinte, triplicaria de intensidade a batalha. “A fúria do ataque”, escrevia Cabral, “ultrapassava a imaginação”. Toldou-se o Sol com o fumo da pólvora e as balas e as flechas caiam como chuva sobre os resistentes de Hugli. Assistiu-se então a actos de grande heroísmo. Um dos barcos, tripulado por três portugueses e um escravo africano, foi alvo de ataque cerrado de vários barcos inimigos. “Um dos portugueses teve as ambas pernas cortadas pelo pelouro de uma lantaca. Os seus companheiros puseram-no à proa onde ele se manteve atacando de contínuo todos os inimigos com dois bacamartes que uma mulher indígena ia carregando”, lembra João Cabral. E dessa forma morreu, “salvando a vida e a honra das várias mulheres brancas que levavam a bordo”.

Cabral dá-nos ainda conta da captura de Lucrécia Tavares, conhecida pela sua extrema beleza, e que muito provavelmente acabou os seus dias num harém. Lucrécia era a amante de Sebastião Tibao, filho do homiziado António Gonçalves Tibao, senhor da ilha de Sandwip em 1615, e provavelmente primo do Tibao que acompanhou frei Sebastião Manrique a Arracão. Outra portuguesa escapou ao cárcere por pouco. Falamos da mulher de um tal Pedro do Couto que transportava o tesouro da Casa dos Jesuítas, o qual consistia, “não contando o ouro e prata em barras, um total de 190 mil moedas”. Assaltado e incendiado o navio onde seguia, conseguiu saltar para água com a criança que tinha nos braços, mantendo-se agarrada a um dos cabos para não ser arrastada pela corrente. Tão desesperada estava que ao aperceber-se da sua iminente captura pediu a uma dos servas que lhe desse um tiro na cabeça. Felizmente, um dos barcos fugitivos chegou a tempo de recolhê-la.

Joaquim Magalhães de Castro

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