Bengala e o Reino do Dragão – 47

O insucesso da missão

No mesmo ano em que era aberta a missão de Rutok, em 1627, Cacela e Cabral deixavam Cooch Behar, tendo chegado em pouco tempo a Paro, a capital do reino do Butão. Em Maio desse ano, viajava o padre João Godinho para Caxemira, e a 29 de Agosto era expedida de Agra uma carta colectiva – redigida por Andrade, Anjos e Oliveira – dando conta da perseguição do rei aos lamas e manifestando grande preocupação, pois estes, devido a essa atitude, previsivelmente se iriam tornar cada vez mais hostis. Andrade escreve ainda outra carta, na mesma altura em que Cacela enviava o seu relato directamente “do reino de Cambirasi”. Em Setembro chega António Pereira a Tsaparang e três meses volvidos é a vez de Anjos escrever uma carta antes da sua partida do Tibete para Goa, para aí se encontrar com o provincial dos jesuítas. Cabral chega a Shigatsé no início de 1628 para voltar a partir pouco tempo depois rumo a Bengala, via Nepal, tendo chegado a Hugli só em Abril. Pena que não exista um relato sobre essa viagem pioneira; de resto, como não há qualquer relato sobre as viagens feitas a Caxemira. O texto que João Cabral envia de Hugli não nos dá grandes pormenores. Não satisfeito com tanta viagem, Cabral, desta feita na companhia de Manuel Dias, parte para Cooch Behar, decidido a encontrar ainda uma outra rota para o Tibete, provavelmente através do Sikkim (Siquim).

1629 será um ano profícuo. João Cabral tenta prosseguir até Tsaparang mas acaba por regressar a Bengala, e, no Verão, chega o padre António da Fonseca à capital do reino de Guge, mais ou menos na altura em que Cabral e Dias partiam para Shigatsé. Não atingiria o destino almejado este último, pois a 3 de Novembro morre algures no reino de Morongo, na parte oriental do Nepal. A memória de Manuel Dias é ainda hoje evocada pela população local, que o considera um santo budista. O seu suposto túmulo é agora alvo de concorrida romaria. Em 1630 Andrade parte para Goa onde é eleito provincial dos jesuítas. Nesse mesmo ano, Demba Cemba, rei do Tibete Central, pede o regresso de Cabral e acontece a revolta dos lamas contra Thi Tashi Dagpa, em Tsaparang e no Guge. Atentemos ao contexto geopolítico da época. Era conhecido o conflito entre Thi Tashi Dagpa, governante do Guge, e o seu irmão, rei de Ladakh (Ladaque). Em 1630 era tal a tensão que as forças ladakhis sitiaram a fortaleza, que se revelava impenetrável. Tendo em conta que os ladakhis ameaçavam executar cinco cidadãos todos os dias, Thi Tashi Dagpa e a sua família renderam-se, tendo sido de imediato decapitados por ordem do monarca ladakhi. Budista fervoroso, Sengge Namgyal, conhecido como o “Rei Leão”, governou o Ladakh, de 1616 até à sua morte, em 1642. A maioria dos cristãos de Tsaparang foi feita prisioneira e a estação missionária de Rutok, a centenas de quilómetros dali, seria arrasada.

Em 1631 o rei de Shigatsé volta a convidar Cabral, e em Fevereiro desse ano o português António Pereira faz-se acompanhar pelos italianos Domenico Capece e Francisco Morando numa viagem ao Tibete. Também por essa altura, Francisco de Azevedo parte para Tsaparang como visitador (inspector) de jesuítas, o que traduz a importância que a Companhia de Jesus atribuía à missão naquelas paragens. Em meados de Maio, João Cabral chega finalmente a Shigatsé e, no fim de Junho, manda o relatório. Ainda nesse mês, Capece, Morando e Pereira decidem permanecer em Agra à espera de notícias de Tsaparang. Era um esperar para ver. Em 25 de Agosto chegaria a esta cidade Francisco de Azevedo, tendo aí permanecido até 4 de Outubro, altura em que, na companhia de João de Oliveira, enceta uma nova rota, rumo a Leh, capital de Ladakh, com o intuito de se encontrar com o vencedor de Thi Tashi Dagpa. Os dois portugueses chegaram à capital do Ladakh a 25 de Outubro e logo foram recebidos pelo rei. Voltariam a merecer a honra de uma audiência cinco dias depois. A 7 de Novembro, em vez de regressar a Tsaparang, Azevedo e Oliveira optam por seguir para a Índia, via Caxemira, inaugurando desse modo uma nova rota para o Tibete. Nesse mesmo mês parte João Cabral de Shigatsé para Hugli.

Logo no início de 1633 Andrade escreve uma carta para Roma, desta feita dando conta dos nada animadores acontecimentos de Guge, e do regime de residência vigiada vivida pelos padres da missão. Livre das suas funções de provincial, António de Andrade pede para regressar ao Tibete. Um ano depois, e no momento em que se preparava para partir na companhia de outros seis jesuítas, Andrade é promovido a Visitador para o Japão e a China, função que nunca chegaria a desempenhar pois morre envenenado em Goa a 16 de Março, ao que consta vitimado por um certo indivíduo que ele se preparava para denunciar ao Santo Ofício. Datada de 1675, há no arquivo jesuíta de Praga uma representação alegórica do morte por envenenamento do padre Andrade extraída de um martirológio dos jesuítas, uma interessante gravura da autoria de Matthias Tanner.

Na Primavera do ano de 1634, o espanhol Nuno Coresma parte à frente da equipa anteriormente reunida por Andrade, mas dois dos membros morrem pelo caminho, perto de Agra, e Coresma segue com Ambrósio Correia até Tsaparang, onde substituem alguns dos padres que lá se encontravam e que aproveitam “a boleia” para regressar a Goa. Foi o caso do padre Alan dos Anjos. Em Agosto desse ano era enviado um relatório sobre a missão do Tibete da autoria de Coresma e co-assinado por Correia e o pioneiro Manuel Marques – já então o missionário com mais experiência do Tibete – ao qual se seguiria nova missiva para Roma. No fim do Verão, Coresma e Marques ver-se-iam privados da sua liberdade. Contudo, algures em Novembro, estavam de partida para Goa, pois Álvares Tavares, o novo provincial de Goa, ordenara aos padres que abandonassem o reino de Guge. Coresma e Marques chegam a Agra a 11 de Dezembro e três dias depois redigem uma carta dando conta do abandono forçado da missão.

Joaquim Magalhães de Castro

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