Cismas, Reformas e Divisões na Igreja – LXXXIV

O Relativismo – I

Não é uma heresia. Não é um cisma. Nem é uma reforma ou divisão. O que é então o relativismo? É uma teoria ou doutrina, chamemos assim, antiquíssima, mais antiga que o Cristianismo, que nega o carácter objectivo do conhecimento e, por conseguinte, o valor absoluto e universal da verdade. No campo da filosofia, já vem desde a Antiguidade Clássica (nos sofistas, por exemplo), ou seja, desde o século VI a.C.. E chegou até aos nossos dias, para ficar. Dado que recai em grande parte sobre verdades morais e religiosas, muitos consideram-na a grande heresia do mundo moderno. Para o relativismo, as verdades não são mais do que opiniões. O entendimento entre os seres humanos só se pode estabelecer na tolerância, pois o que é verdade para uns pode não o ser para os outros. Não deixa de ser uma verdade, mas não é tudo. Porque daí se cai no indiferentismo e, desta forma, passa-se a estabelecer leis, entre outras normas, não segundo critérios de moralidade, mas consoante opiniões dominantes ou de maior impacto social. As encíclicas “Veritatis splendor” e “Fides et ratio”, da autoria de São João Paulo II, são documentos de análise, alerta, mas também de proposição de alternativas ao relativismo, que denunciam e abordam sem… relativismos. Em suma, acentua-se nessas encíclicas que a Igreja intervém em nome da sua missão de “diaconia da verdade”, mesmo em relação às verdades que estão ao alcance da inteligência natural.

Decidimos escrever este artigo em virtude de neste ciclo que temos tratado se falar tantas vezes de relativismo, particularmente nas últimas edições. No trabalho de escrita deste artigo deparámos com as incontornáveis encíclicas joanopaulinas acima referidas, cruciais e basilares para o entendimento da Igreja em relação ao tema em apreço. A primeira, “O Esplendor da Verdade” (sobre os fundamentos da moral católica), foi publicada em 6 de Agosto de 1993 (há 25 anos) e a segunda, “Fé e Razão” (acerca das relações entre a fé e a razão, condenando o ateísmo e a fé sem razão, além de afirmar o papel da filosofia e da razão na religião), a 14 de Setembro de 1998, a qual faz este ano vinte anos. Mais do que a justa homenagem, importa mais a referência aqui à actualidade plena das mesmas.

O relativismo é uma das problemáticas de fundo de ambos os textos pontifícios. É uma corrente que nega toda a verdade absoluta e perene, assim como toda a ética absoluta, deixando ao critério de cada indivíduo definir a sua própria verdade e o seu bem. No outro extremo, está o fundamentalismo, que afirma e impõe, sem concessões, a existência de verdades e normas fundamentais, incontestáveis. No relativismo, cada indivíduo é o seu próprio padrão (ou a medida de todas as coisas, como já dizia Protágoras, 486-411 a.C.), como se não houvesse colectivo. Os pontos de vista não têm verdade nem validade universal, mas sim uma validade subjectiva e relativa perante os referentes.

O relativismo, no que concerne à religião, pode ser gnoseológico – não há verdade objectiva, dependendo sempre a sua validade de um juízo das condições em que se enuncia; ou moral – não há bem ou mal absolutos, mas sim dependentes de circunstâncias concretas.

 

A importância do discernimento

Segundo esta corrente, a inteligência humana não pode alcançar a verdade como tal, mas apenas aspectos enquadrados dentro do subjectivismo de quem os professa. Há, deste modo, uma relativização da Verdade e da Ética, com consequências na vida moderna. Um dos factores que suporta o relativismo é o historicismo, pois a história baseia-se na evolução, na qual há verdades hoje que amanhã o não serão, bem como no passado o eram e hoje já são obsoletas e anacrónicas.

A Igreja rejeita o relativismo, mas opõe-se também ao fundamentalismo: há verdades e normas perenes, absolutas, plenas, mas existem outras com um carácter mais contingente e mutável. Importa por isso aos cristãos de hoje não cair na facilidade do relativismo e saber adaptar-se, sem fundamentalismos nem recusas intransigentes, ao mundo moderno, sem perda de valores perenes.

O relativismo ganhou um maior impacto a partir da segunda metade do século XX, quando se começou a colocar Deus “na prateleira” em termos de ciência, filosofia, conhecimento, com implicações na sociedade. A metafísica era posta de lado, basta pensarmos na advertência do grande filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951): “É preciso não falar daquilo que a mente do homem não atinge”. Por isso se pode afirmar que o relativismo é a recusa de qualquer proposição filosófica ou ética de valor universal e absoluto. Tudo o que se diga ou faça é relativo ao lugar, à época e ao conjunto de circunstâncias nas quais o homem se encontra. De acordo com esta corrente, na filosofia não se pode falar da verdade ou do erro, ou falsidade, como também na área da Moral não se pode mais falar do bem que se deve fazer e do mal que se tem que evitar.

Por isso, passa-se a ignorar a lei natural, que para muitos é a lei de Deus, incutida em todos os seres humanos a partir do momento em que passam a fazer uso da razão. No relativismo, da mesma forma a sociedade só deverá conhecer e respeitar as leis que os seus governantes lhe propõem sem questionar a validade dessas leis (que são designadas como “positivas”) e a sua articulação com a referida lei natural, ou de Deus. Ou seja, aceitam-se as leis dos Governos, dos legisladores, sem pensar para lá das mesmas, nas leis universais ou no plano do bem e do mal, sem maniqueísmos ou radicalismos.

Neste sentido, o cardeal D. Joseph Ratzinger, a 18 de Abril de 2005, na homilia da missa preparatória do conclave que o elegeria como Papa (Bento XVI) no dia seguinte, alertava para a «ditadura do relativismo». «Não vos deixeis sacudir por qualquer vento de doutrina» (Ef., 4, 14), citou o cardeal. «Quantos ventos de doutrina viemos a conhecer nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modalidades de pensar…! O pequeno barco do pensamento de não poucos cristãos foi frequentemente agitado por essas ondas, lançado de um extremo para o outro: do marxismo ao liberalismo ou mesmo libertinismo, do colectivismo ao individualismo radical, do ateísmo a um vago misticismo religioso, do agnosticismo ao sincretismo. Todos os dias nascem novas seitas e se realiza o que diz São Paulo sobre a falsidade dos homens, sobre a astúcia que tende a atrair para o erro (Ef., 4, 14). O ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, é muitas vezes rotulado como fundamentalismo. Enquanto isso, o relativismo ou o deixar-se levar para cá e para lá por qualquer vento de doutrina, aparece como orientação única à altura dos tempos actuais. Constitui-se assim uma ditadura do relativismo, que nada reconhece de definitivo e deixa como último critério o próprio eu e as suas veleidades».

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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