A névoa da portela de Dochula
No seu relato, Estêvão Cacela afirma ter-se dedicado de corpo e alma a aprender o idioma da região e, provavelmente, o Sânscrito, uma vez que menciona ter estudado “os livros dos lamas”. Ou seja, embora, à semelhança dos demais, justifique as dificuldades “em ministrar a catequese” com o desconhecimento da língua, este jesuíta tem a humildade de a aprender através do contacto com os lamas. No processo, certamente terá enxergado alguns dos preceitos do Budismo. Como dissemos, o jesuíta identifica “Chescamoni” – Sakyamuni, Buda – como o filho de Deus. Tomando como ponto de partida os mistérios e dogmas cristãos, Cacela revela-nos nas páginas do “diário” a sua percepção das crenças dos budistas butaneses, contrapondo-as a questões ligadas à Santíssima Trindade, à Encarnação, à Virgem Maria e à existência do inferno e do paraíso. A “Relação” é por isso, e também por se tratar do primeiro texto ocidental sobre o Butão, uma obra de importância maior.
Não há melhor cenário para imaginar as discussões de teor teológico travadas entre os padres e os monges locais, do que um cume de montanha envolto pela névoa que a espaços oculta as copas dos pinheiros e demais coníferas que enxameiam as proximidades do mosteiro de Chagri e outras colinas do País. Presenciaríamos névoas dessas, vezes sem conta, e incontáveis dias de chuva e curvas e contracurvas de trabalhos, pois no que se refere à rede viária, e para grande surpresa minha, o Butão tem ainda longo e largo caminho a percorrer. Sinceramente, não esperava encontrar tão sofríveis estradas. Estão ao nível (ou mais abaixo) das do Nepal e daquelas rugosas regiões do norte da Índia.
No decorrer da nossa viagem pré-monção, por duas ocasiões ganhámos os três mil e cem metros de altitude da portela de Dochula. Caracterizam-na os 108 chortens (mítico número no universo tibetano) Druk Wangyal, monumentos religiosos construídos em 2004, sob o patrocínio da rainha Ashi Dorji Wangmo Wangchuck, para “celebrar a estabilidade e o progresso que Sua Majestade trouxe para a nação”. Embora reflictam “as tradições espirituais e artísticas do Butão”, mais não são do que um memorial em homenagem aos soldados butaneses mortos na batalha travada em Dezembro de 2003 com os insurgentes do Assam indiano. Liderava a tropa o próprio rei, Jigme Singye Wangchuck, agora orgulhoso de ter desalojado os rebeldes dos seus trinta acampamentos instalados em território butanês. Conflitos étnicos não são incomuns no Reino do Dragão. Já na década de 1990 o Governo do Butão expulsara a população de etnia lhotshampa, de origem nepalesa e que constituía um quinto da população total do País. Foi-lhe, no processo, negada a cidadania butanesa, tornando-a apátrida. Alguns lhotshampas têm sido ultimamente autorizados a regressar e a fixar-se nas zonas desabitadas do Sul. Curiosamente, tantos eles como os assameses (habitantes do Assam) constituem hoje a força braçal, como construtores de estradas.
No horizonte, a norte e a noroeste, em dias desanuviados, avistam-se vários picos de montanha cobertos de neve, entre eles o Masanggang (sete mil 185 metros) e o Gangkhar Puensum (sete mil 570 metros), o ponto mais alto do Butão e a mais alta montanha do mundo jamais escalada. Tive a oportunidade de ficar a conhecer – numa dessas paragens no colo de Dochula – a história do padre jesuíta Kinley Tshering, convertido ao Cristianismo quando frequentava uma escola católica em Darjeeling, aos 15 anos, em 1974, e logo aprofundaria a sua fé quando prolongou os seus estudos na Companhia de Jesus de Bangalore e Mumbai.
“Sempre quis consagrar a minha vida a Cristo como sacerdote. Porém, os meus afazeres profissionais, a pressão da família e o meu estilo de vida não ajudavam a que tomasse uma decisão final”, dizia ele numa entrevista à revista Religión en Libertad. Nesses momentos, de esgotamento diante da incerteza da vocação, Kinley rezava a Deus para lhe dar um sinal. “Recordo-me de Lhe dizer: ‘tens que me dar um sinal como esse [concedido] a Teresa do Menino Jesus, ao ver a neve no Verão, mas suficientemente forte para que não duvide’”. O sinal surgiria quando Kinley se encontrou com a Madre Teresa num voo para Calcutá. “O meu coração batia com força e eu respirava com dificuldade (…) Ela ficou cheia de curiosidade quando lhe disse que vinha do Butão e era católico. Expliquei-lhe que me tinha convertido e, em pouco tempo com ela, inteirou-se da angústia que pairava no meu coração: um desejo imenso de ser sacerdote. Ela tomou-me pela mão e disse: ‘Não costumo dizer isso a muitas pessoas, mas você tem uma vocação. Seja generoso com Deus e Ele será generoso com você’”.
Poucos meses depois, Kinley Tshering entrava para o noviciado dos jesuítas no Monte Carmelo, em Kurseong. Após a sua ordenação sacerdotal, o padre Kinley viajou até Calcutá para agradecer a Madre Teresa a sua ajuda. Ao vê-lo, a primeira coisa que ela disse foi: “Durante os últimos dez anos rezei por você”. Kinley Tshering foi o primeiro sacerdote católico de Butão e é actualmente o superior dos jesuítas de Darjeeling.
Joaquim Magalhães de Castro