Os dzongs defensivos
A costumeira itinerância do monarca butanês deve-se também ao período conturbado da época. Datam dessa altura os inúmeros dzongs (mosteiros-fortalezas) que vemos espalhados pelo País, muitos dos quais construídos por iniciativa do monge guerreiro. Aliás, deve-se a ele esse conceito arquitectónico tão sui generis. O dzong de Simtokha, datado de 1629, o primeiro dos muitos que o “unificador do Butão” mandou erguer, funciona hoje como centro monástico e administrativo, e abriga um dos principais institutos de aprendizagem de Dzongkha, o idioma oficial do reino. Resistiu a inúmeros ataques, sendo um deles liderado por cinco lamas descontentes em estreita colaboração com o exército invasor tibetano. Seriam derrotados, e Palden Lama, o seu líder, abatido em combate. Noutra dessas investidas, em 1630, o inimigo tibetano logrou obter vantagem até que uma parte do dzong pegou fogo tendo colapsado o telhado em cima do grosso das forças invasoras. Interessa-nos sobremaneira este episódio histórico, e veremos já porquê.
Informam os anais butaneses que Cacela e Cabral, vindos de um país chamado “Pur-dhu-ka”, transportavam consigo ofertas e que entraram no Butão após terem passado por Goa e Cooch Behar. As ditas prebendas – pequenos canhões, pólvora e um telescópio, entre outros objectos – terão sido entregues logo aquando o primeiro encontro com Shabdrung, que terá ocorrido na colina onde se ergue hoje o mosteiro de Simtokha. Ainda de acordo com as crónicas butanesas, as ofertas terão sido guardadas numa casa (o mosteiro não existia na altura) onde pouco tempo depois ocorreu uma violenta explosão, não se sabendo se se tratou de um acidente ou foi resultado da utilização experimental das mesmas. É perfeitamente legítimo relacionar o incidente com o episódio da incursão tibetana mal sucedida atrás citada. Uma coisa é certa: o armamento oferecido por Cacela e Cabral foi seguramente utilizado pelas forças de Shabdrung na luta de resistência contra o invasor tibetano. E nesse caso, estaremos perante um importante contributo luso na tarefa de unificação e solidificação do reino do Butão, à semelhança do que aconteceu no Japão, se bem que, ali, numa escala muito menor.
Estêvão Cacela refere-se a Shabdrung como o “Droma Raja” (ou “Lama Rupa”) termo em Sânscrito para designar “rei religioso”, título antigo atribuído a todo o monarca que estivesse empenhado em espalhar o Budismo, como era o caso do rei butanês.
Para percebermos o contexto regressemos a Paro e ao hotel onde ficamos alojados. O dito Palácio Gangtey todo ele respira história. Logo ao transpor o portão principal, guardado por duas imponentes estátuas representativas do mítico “leão das neves”, senti como se uma série de factos passados tivessem de novo ganhado vida, agradável sensação que as paredes dos aconchegantes quartos reforçaria. Eis-me regressado por momentos aos mais inacreditáveis locais já percorridos em todas as latitudes de cultura tibetana – do profundo e inóspito Ngari à misteriosa Lamayuru do meu querido Zanskar, em pleno coração do Ladakh. Só que desta feita com muito, muito mais conforto e com vista de eleição para o bem iluminado dzong de Paro, do outro lado do rio Pachu, que em noite de lua nova é ainda mais feérico. Perfeito o casamento entre a rusticidade e o bem-estar que um alojamento moderno expectavelmente nos proporciona. Gangtey, o equivalente butanês a “terra elevada”, oferece – e agora já é dia, e bem luminoso, por sinal – uma vista panorâmica do belo vale Paro adornado por exuberantes campos verdes de arroz. Foi construído nos finais do século XIX a mando de um dos penlops (governadores) que ali fez descansar a sua comitiva. Impressionado pela beleza que o circundava, Dawa Penjor – assim se chamava o penlop – logo tratou de adquirir à comunidade local aquele pedaço de terra e buscou o mais afamado dos arquitectos, Zow Gendey, para que este lhe riscasse o seu futuro palácio. E assim se fez apesar do Butão de então continuar, como sempre fez ao longo da sua história, a debelar as intentonas do invasor do norte, agora com o apoio militar e o espicaçar permanente dos inefáveis britânicos que longe estavam de se contentar com a vasta Índia e o inteiro Tibete à força toda queriam abocanhar.
A acreditar na literatura oral, os penlops eram “administradores experientes e budistas devotos”, e havia-os até considerados encarnações de alguns dos mais santos dos lamas. Na verdade, Dawa Penjor era tio do Gongsar Ugyen Wangchuck, o primeiro rei do Butão, ou melhor dizendo, o primeiro monarca hereditário do Butão. Após a sua coroação, em 1907, o primeiro dos Wangchuk (a actual dinastia reinante) decide que doravante o palácio passaria a ser usado como residência ocasional para a família real, decreto que perduraria até à década de 1940, quando o Gangtey Palace alojou durante alguns anos Jigme Palden Dorji, o primeiro Primeiro-Ministro do Butão. Com a estada aí de Pundit Jawaharlal Nehru, em 1958, o local passaria definitivamente a funcionar, digamos assim, num “regime de domínio público”, alojando agora os estrangeiros que continuam afluir a este reino dos Himalaias.
Joaquim Magalhães de Castro