Bengala e o Reino do Dragão – 29

O encontro com o rei monge

Há muito que a notícia da presença dos padres no reino tinha chegado a Shabdrung. Após três dias de marcha, Cacela e Cabral depararam com uma aldeia onde os aguardava um outro lama que a mando do rei os viera buscar. Logo mandaram avisar Shabdrung e este expediu mais monges, desta feita com cavalgaduras ajaezadas para a circunstância. Assim, confortavelmente instalados, em cortejo, seguiram caminho os dignitários estrangeiros. Mais adiante seriam acolhidos por nova remessa de emissários. Nas palavras de Cacela, “outra gente sua convidando-nos com o seu chá, que eles e os seus usam muito”.

É conhecida a importância do chá – com ou sem leite, com ou sem manteiga, dependendo da latitude onde nos encontramos – na cultura tibetana.

A jornada prosseguiu, desta vez “por serras bem altas”. Já perto do local onde estanciava o rei arribariam vários jovens monges montados a cavalo que festejaram o acontecimento “em muitas carreiras que deram em uma paragem onde a serra lhe sofria”. Esta passagem indicia uma corrida equestre, popular actividade desportiva entre os tibetanos. Mais adiante, por entre as árvores, uma catrefa de religiosos aguardava-os soando “charamelas e trombetas, que com isto têm alguma semelhança os instrumentos de que usam em suas festas”. Estariam aí uma centena de monges, “todos de pouca idade de doze até vinte anos, que postos em ordem de duas fileiras nos vinham receber, no meio três lamas pequenos com cheiro que levavam em seus turíbulos, que é honra única do rei”. Esta passagem denota a importância que Shabdrung atribuiu à chegada de tão ilustres e misteriosos visitantes.

Cacela e Cabral ficariam alojados numa tenda – “mui bem feita forrada de seda da China” – e numa outra ali próxima, “bem ornada de seda”, após merecido descanso, seriam recebidos pelo rei. Eis como Cacela descreve o tão aguardado momento: “Ele assentado em um lugar alto vestido de seda vermelha bordada de ouro. A mão direita e muito junto a ele estava em outro lugar correspondente uma imagem de seu pai com uma lâmpada acesa que ali sempre ardia”.

Merecedores das maiores honras e amabilidades, Shabdrung pediu-lhes que se sentassem num local elevado – nem os lamas de escalão superior tinham direito a tal distinção – mostrando enorme prazer em conhecê-los. E quis saber de onde vinham. Os padres prontamente satisfizeram-lhe a curiosidade. “Poderíamos dizer-lhe que éramos portugueses, porque a estas serras como nunca vem gente estranha, nem se lembram de terem visto, ou ouvido ter por aqui passado semelhante gente, assim não chegou a eles o nome de frangues que em todo o Oriente têm os portugueses”, relata Estêvão Cacela.

Para grande frustração dos jesuítas de pouco lhes valeu o intérprete, “que sabia muito bem o hindustano, o persa e o cocho”, mas não o butanês. Do outro lado, o panorama não era muito mais animador: havia apenas um lama de Chaparangue,“mui querido do rei”, que entendia um pouco de hindustano. A comunicação com Shabdrung seria, por esse motivo, bastante difícil, mas o suficiente para os missionários lhe poderem explicar a razão da sua jornada. Ou seja, a pregação da “fé de Cristo Nosso Senhor por termos sabido que anteriormente a tiveram e depois com a mudança dos tempos e falta de mestres foi esquecendo”. Recorde-se que nessa época os missionários portugueses acreditavam ser o Budismo tibetano uma antiga forma de cristandade muito desvirtuada. E foi a incessante busca, fomentada pelos mitos medievais do Cataio e do Preste João, tantas vezes entrelaçados, que conduziria os religiosos portugueses à extraordinária aventura dos Himalaias. Shabdrung demonstrou apreço pelos padres – só podia ser por boas razões terem-se dado ao trabalho de vir de tão longe para o visitar – e pediu-lhes que aprendessem a língua – “para nós lhe podermos falar” – disponibilizando para a tarefa o lama de Chaparangue, que doravante os acompanharia.

As escassas fontes butanesas que mencionam o acontecimento apresentam uma versão diversa, como já me tinha alertado em Thimphu o investigador Yonten Dargye. Para os butaneses, fora a fama de Shabdrung, “incansável e vitorioso lutador contra os inimigos tibetanos”, que chegara a Portugal, daí o rei dessa nação ter decidido enviar os padres como seus emissários para comprovar a reputação desse monarca dos Himalaias. Estamos aqui perante um cenário similar ao dos imperadores chineses, que encaravam todos os visitantes como súbditos de reinos tributários, por mais longínquos que fossem.

O texto de Cacela dá a entender que Shabdrung não se encontrava no palácio, antes numa espécie de corte ambulante, o que refuta a ideia, defendida por alguns, de que o encontro teve lugar no mosteiro de Chagri. O mais provável é que tenha acontecido algures numa colina à saída de Thimphu, onde se situa hoje o mosteiro de Simtokha.

Deixemos Cacela explicar-nos o motivo da itinerância real: “A causa de o acharmos alojado em tendas nesta serra, é porque costuma a gente das povoações chamá-lo cada um para a sua e assim se vai pôr em alguma paragem donde possa ir a muitas, dando-lhe então lagos presentes de cavalos, gado, arroz, panos e outras coisas, que é a sua principal renda, e, os que por ficarem longe o não convida, o vêm buscar também com suas ofertas”.

Joaquim Magalhães de Castro

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