Bengala e o Reino do Dragão – 20

Chapcha, o lugar do rei

Após o assalto, desprovidos de alguém que fosse entendedor da língua local – “no meio de serras frequentadas de ladrões, sem ter quem me guiasse avante” – já que os intérpretes tinham sido cúmplices do crime, Estêvão Cacela e o moço não tiveram outra alternativa senão regressar ao ponto de partida. Um penoso estirão que durou toda a noite trouxe-os de novo à aldeia onde ficara João Cabral. Para bem aquilatarmos a dureza da coisa, atentemos ao que vem descrito na “Relação”: “acompanhando-nos mui bem o frio e o vento passando pela neve, que neste mês de Março aqui não falta, e assim pela escuridade da noite, como pelos caminhos destas subidas e descidas serem mui estreitos, e de serras mui alcantiladas era necessário andar boa parte da noite com pés e mãos juntamente para o que me ajudava muito terem-me deixado os companheiros desembaraçado só com o meu breviário e bordão”.

Cacela foi encontrar o compatriota em negociações com aqueles com quem se tinha cruzado. Afinal, eram gente de palavra. Não só não os impediram como os ajudaram “a negociar-nos para ir adiante”, ou seja, a seguir caminho, o que aconteceu a 16 de Março.

Ao cabo de seis dias de terra palmilhada avistaram nova aldeia. Desta vez dão-lhe um nome: Rintam.

Rintam pode ser identificada com a actual povoação de Chapcha, o nosso próximo destino. Mais uma vez dando provas de ter a matéria em dia – até porque está desde o contacto inicial com a agência a par do propósito do nosso périplo – Sangay Dorji sugere uma paragem para que possamos avistar a mencionada aldeia. Ao longe, por entre o esparso casario disseminado pela encosta pouco arborizada, sobressai o mosteiro de Chapcha, outrora local de residência do penlop (espécie de governador ou regedor) local, pelos vistos com relevante desempenho na história do Butão. Neste mosteiro-fortaleza permanecia o dito dirigente durante os mais aprazíveis meses do ano. Antes da unificação do reino (conseguida pela acção de Zhabdrung), os penlop eram praticamente donos e senhores dos distritos que administravam; hoje, não passam de figuras simbólicas por inteiro submetidas ao poder da Casa de Wangchuk, a dinastia reinante desde a segunda metade do século XIX.

À medida que o veículo, colina acima, vence o ziguezagueante estradão que deriva da estrada principal, vão-se avistando várias casas em ruínas, comprovativo da ancestralidade do local. Nada do género presenciáramos nas aldeias anteriores. Reconcilio-me aos poucos com o País, agora que mostram a sua autenticidade as casas com meias paredes de madeira – janelas, ombreiras e parapeitos ricamente decorados – onde, protegidos pelos beirais, se encostam os molhos de lenha destinados a aquecer as lareiras no longo Inverno. Estâncias quase intactas no seu traçado original, desfeiteadas apenas pelos tectos de zinco substitutos das lajes de xisto e do colmo. Entre o telhado e a base há um sótão aberto onde se armazenam todo o tipo de alfaias e o feno para o gado, que por estas bandas é sobretudo vacum. O intenso castanho das madeiras contrasta com o branco da cal que cobre partes substanciais das paredes feitas de taipa. Nos campos em redor cultivam-se batatas e todo o tipo de hortaliças. Por aqui não há adubos sintéticos e o que se põe na mesa é cem por cento orgânico. Lembro-me de outro caso de sobrevivência do espontâneo: a Geórgia, onde os frutos sabem a verdadeira fruta, raridade nos tempos que correm.

Uma mulher sentada num alpendre a quem perguntamos direcções, antes de nos responder, expele com potente e bem masculina bisga parte do betel que masca e lhe mancha de encarnado a boca e os dentes. Ao longo de várias gerações dentes cor de carvão e gengivas ao rubro eram considerados sinais da beleza feminina por estas paragens. No Japão, a essa prática ancestral (também adoptada pelos homens) chamavam-lhe ohaguro. Desse jeito se exibiam e cortejavam os sexos opostos, dando largas à vaidade e amor-próprio enquanto retiravam proveito dos efeitos estimulantes e psicotrópicos da planta. O ohaguro seria banido pelas autoridades em 1870. Hoje, o hábito de enegrecer os dentes continua presente no sub-continente indiano (regiões himalaicas compreendidas), no seio de inúmeros grupos minoritários da China e do Sudeste Asiático e ainda nas ilhas do Pacífico. Agora, e quase exclusivamente, praticado por idosas. Betel é uma corrupção portuguesa de “vetila”, o termo malaio para “folha”. Três ingredientes principais são utilizados na sua preparação: nozes de areca, folhas de betel (família da pimenta) e uma pasta de cal vermelha feita a partir de calcário ou conchas do mar esmagadas, potente digestivo que provoca forte ardor na boca.

Curiosos vultos espreitam-nos por detrás das janelas fechadas e as crianças vindas da escola vêm ver que tipo de gente somos nós. Duas delas, envergando bonitas kiras – o tradicional vestido longo, até aos tornozelos, acompanhado por uma jaqueta exterior conhecida como tego, de padrão axadrezado ou listado, indumentária feminina por excelência – exemplificam bem os grupos étnicos que compõem o tecido social do País: o mongol, largamente maioritário, constituído por múltiplas tribos – do sherpa ao tibetano; do lepcha ao limbu e ao naglop – e os lothshampas, de origem nepalesa, conhecidos como a “gente do sul”. Ainda há não muito tempo, notoriamente discriminados e até destituídos da sua cidadania, muitos buscaram refúgio no vizinho Nepal.

As meninas mostram-me os desenhos que fizeram essa manhã. Retratam, como convém, a família real, cujo estatuto é similar ao da congénere tailandesa. Ou seja, estão apenas um degrau abaixo dos deuses. Tudo podem e em tudo mandam.

Joaquim Magalhães de Castro

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