Bengala e o Reino do Dragão – 14

A Rangamati dos firingis

Ao virar do século XVII surgem inúmeras referências a uma comunidade cristã de dimensão considerável, certamente de origem firingi, em Rangamati, nas margens do Bramaputra. Um texto datado de 1682 e da autoria dos monges agostinhos residentes em Bandel (Hooghly), em Bengala, dedica alguns parágrafos à comunidade cristã de Rangamati que totalizava nessa altura sete mil almas. Frey Sicardo, o padre agostiniano que aí atendia as necessidades espirituais dos católicos, faz referência a um outro local que os registos referem como Hossumpur (ou Ossumpur), aparentemente nas cercanias de Rangamati, onde residiria uma outra comunidade de firingis. Desde então os missionários do Padroado Português do Oriente passariam a fazer visitas frequentes a Rangamati e a Hossumpur. Estes cristãos isolados mereceriam a atenção de um alto dignitário da Igreja, neste caso o jesuíta Francisco Laynes, bispo de São Tomé de Meliapore, que, em 1714, acompanhado pelo padre Barbier, visitaria Rangamati no âmbito de um périplo pelas paróquias de Bengala. O “Indo Portuguese Correspondence”, de 30 de Setembro de 1865, registou o evento do seguinte modo: “Rangamati é uma cidade situada na fronteira norte do Império Mogol, a 26 graus de latitude norte. Corria um ditado nessa época em Bengala que se duas pessoas visitassem Rangamati, uma delas, pelo menos, iria morrer nesse lugar. Semelhante crendice, no entanto, não impediu a acção dos nossos missionários católicos, pois acreditavam piamente que o melhor que lhes poderia acontecer era morrer no desempenho das suas nobres funções. Consta que os nossos missionários subiram os rios Megna e Bramaputra, e ao quinto ou sexto dia desembarcaram e permaneceram vinte e quatro horas em Hossompur, uma povoação exclusivamente cristã onde havia uma igreja dedicada a São Nicolau de Tolentino. A norte daí a paisagem é desértica e o clima insalubre. Durante os vinte e cinco dias que permaneceu em Rangamati, o bispo Laynes aproveitou para administrar o crisma a mais de mil pessoas”.

Uma nota mais detalhada sobre a localização e a fortificação de Rangamati foi feita anos depois, em 1764, pelo afamado geógrafo britânico James Rennel. Diz-nos ele que “Rangamatty é uma pequena vila nas imediações de um conjunto de pequenas colinas que constituem a margem ocidental do rio Sunecoss (Sankosh) a cerca de duas milhas e meia a noroeste do Bramaputra, com o qual comunica. Tem um pequeno forte feito de lama com algumas peças de artilharia. Observei cerca de 50 armas de 2 a 4 libras de calibre. A latitude do lugar é 26 0 6 norte e a longitude de Dacca 0 0 20 oeste”.

A obra de Rennel, “Memória de um Mapa do Hindustão ou o Império Mogol e o seu Atlas de Bengala”, assinala claramente Rangamati perto de Goalpara. Este mesmo mapa está incluído no capítulo IV do livro de Jean Deloche “Viagem no Assam”.

Os cristãos mantiveram-se em Rangamati durante cerca de cem anos. A condição de soldados obrigava-os a permanecerem estacionados naquela região prontos a participar nas campanhas militares mogóis no vizinho Assam. Foi assim que criaram raízes na região. Porém, com o enfraquecimento da influência mogol, logo no início do século XVIII, o seu serviço foi dispensado e é possível que tenham então partido para outros locais, optando preferencialmente por seguir em direcção leste. O pormenorizado registo acerca do modo de vida e tradições dos povos no Norte da Índia da autoria do frade capuchinho Marco Dell Tomba, escrito entre 1758 e 1769, dá-nos conta que padres portugueses residentes em Rangamati tinham, aquando da sua visita àquela povoação (feita a expensas da Propaganda Fidae), regressado definitivamente a Daca.

Após ter deixado Goa, em 1759, para escapar à perseguição movida pelo Marquês de Pombal aos jesuítas presentes em todo o espaço português, o padre Joseph Tieffenthaler, na sequência das suas deambulações pelo Norte da Índia, acabaria por também visitar essa colónia cristã. Tieffenthaler refere-se a Rangamati como uma “cidade outrora muito povoada, mas ainda com uma igreja”. Já o comerciante francês Jean-Baptiste Chevalier que, entre Abril de 1755 e Maio 1757, efectuou três visitas a Assam, com passagem por Rangamati, chama a atenção para a localização estratégica da cidade e a sua importância comercial, realçando o papel do faujdar, que exercia funções administrativas e de defesa. No seu livro de memórias Chevalier fala-nos da “antiga reputação” de Rangamati, da sua fortaleza e dos canhões e soldados portugueses que eficazmente a protegiam. Todavia, não nos dá detalhes, pois por essa altura, muito provavelmente, o sítio estaria já em declínio acentuado. É provável até que todos os sete mil firingis tivessem já abandonado Rangamati. Porém, pequenas bolsas de resistentes permaneceriam na região, como nos dá conta o relato “Topografia de Assam” do inglês John M. Cosh. Redigido em 1837, relata o período em que este participou como cirurgião na campanha militar dos britânicos nas terras do povo kol, entre 1832-1833. Cosh descreve-nos longamente a pequena comunidade de cristãos nativos de ascendência portuguesa presentes em Goalpara. Totalizavam uns 50 ou 60 indivíduos e apesar da ausência dos padres tinham-se mantido fiéis ao Catolicismo. Cosh constatou que, na forma de se vestir e nos costumes do dia-a-dia, não se distinguiam dos nativos. Tinham como actividade laboral o pastoreio de bovinos ou eram “chuprasses”, ou seja, serventes. Apesar dessa humilde condição, temiam-nos de sobremaneira os povos que habitavam em redor, mas na verdade estavam entregues a si mesmos… Devido à escassez de pessoas os casamentos nem sempre aconteciam dentro da comunidade e os realizados no exterior resultavam invariavelmente em exclusão social, e, como consequência, uma cada vez maior diminuição dos membros da comunidade.

Joaquim Magalhães de Castro

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