O Molinismo
O termo “Molinismo” é uma designação usada para alusão ao sistema que se propôs reconciliar a Graça e a Livre Vontade (ou Livre Arbítrio). Este sistema, ou doutrina, foi desenvolvido pelo sacerdote jesuíta espanhol Luís de Molina (1535-1600), tendo depois sido adoptado no essencial pela Companhia de Jesus, com a devida controvérsia. Em geral, opõe-se à doutrina tomista (de São Tomás de Aquino, embora o termo tenha um sentido mais amplo) da graça, a qual era defendida pelo teólogo dominicano frei Domingo Báñez (1528-1604). Este, na senda tradicional da teologia escolástica (tomista), tentou harmonizar a graça e o livre arbítrio segundo os princípios de São Tomás de Aquino, também dominicano. Enquanto Molina procurou clarificar a misteriosa relação entre a graça divina e a livre vontade a partir do conceito de liberdade, os tomistas, liderados por Báñez, no esforço de explicar a atitude da vontade sobre a graça, começavam com a obscura ideia da graça eficaz.
A questão a que ambas as escolas procuravam responder era basicamente esta: de onde provém o seu efeito infalível da graça eficaz (gratia efficax), que inclui em si mesmo o livre consentimento actual da vontade e como é que apesar da infalível eficácia da graça, a liberdade da vontade não se vê impedida? Problema imenso, de difícil solução, mas com um impacto muito grande na Reforma Católica e acima de tudo na cultura e mentalidades que se formavam em finais do século XVI, depois de Trento. Não esqueçamos que o Luteranismo, por exemplo, brotou da questão da graça, desta mesma temática agora em debate entre Molina e os tomistas…
Os teólogos católicos, no entanto, não deixavam, nesta questão, de salvaguardar dois princípios básicos: primeiro, a supremacia e causalidade da graça (contra várias heresias, aliás, como o Pelagianismo) e, em segundo, a intacta liberdade de consentimento na vontade (contra o primeiro Protestantismo, de Lutero por exemplo, e o Jansenismo). Estes dois princípios são, recorde-se, dogmas da Igreja, clara e enfaticamente definidos pelo Concílio de Trento (1545-1563).
Luta de tendências
Mas enquanto o Tomismo insistia na infalível eficácia da graça, sem negar a existência e necessidade da livre cooperação da vontade, o Molinismo enfatiza a liberdade sem limites da… liberdade! Mas sem pôr em causa, refira-se, a eficácia, prioridade e dignidade da graça! Esperava-se, em finais do século XVI e nos tempos vindouros, que ambas as correntes se encontrassem e unissem, alcançando uma mesma solução científica e teológica para tão importante problema. Mas não foi assim, de facto. Os pensadores não eram ineficientes ou destituídos, mas os dois caminhos não se encontraram de forma serena e harmoniosa: ora chocaram ora, principalmente, afastaram-se. A intrincada natureza do problema talvez tenha sido a causa de tal afastamento, que parecia então estar até para lá dos limites das capacidades humanas, dado o seu carácter mistérico. Os seres humanos possuem uma liberdade significativa, libertadora, portanto (sem estar aqui a questionar os seus limites… ou ausência destes…), Deus possui o controlo providencial sobre tudo o que ocorre no mundo: esta no fundo é a questão, o binómio, em debate, o problema de fundo…
Na sua forma original, o Molinismo pretendia combater a heresia da Reforma Protestante, pela qual tanto os pecadores como o justo tinham perdido a liberdade da vontade. O Molinismo, por seu turno, vai manter e defender o dogma tridentino que ensina que a liberdade da vontade não foi destruída pelo pecado original e que esta mesma liberdade permanece intacta sob a influência da graça divina. A liberdade é o poder da vontade para actuar ou não actuar, fazer “desta ou de outra maneira”, enquanto característico da necessidade, como nos animais ou coisas inanimadas, isto é, fazer com que se produzam os seus efeitos por uma necessidade intrínseca. A liberdade da vontade – livre arbítrio – é uma consequência da inteligência, e como tal é o mais precioso dos dons do homem, algo que não se pode perder sem aniquilar a sua própria natureza. O homem é necessariamente livre em todos os estados da vida, da actual ou possível, seja num estado de natureza pura (como nos animais), ou num estado de natureza caída, ou no estado de regeneração. Privar o homem da sua liberdade da vontade seria a degeneração da sua natureza e passaria ao estado dos animais, referiam os teólogos. Mas esse estado de pureza nunca existiu, privado de graça e justiça sobrenaturais, pois o estado de justiça original não fora reestabelecido pela redenção de Cristo, pelo que só se pode ter em conta o estado presente do homem para resolver o problema da relação entre a graça e a livre vontade. Apesar do pecado original e da concupiscência, o homem é ainda livre, não apenas quanto ao bem e ao mal éticos nas suas acções naturais mas também nas suas obras salvíficas sobrenaturais nas quais a graça divina coopera com a sua vontade.
É de facto uma das mais complexas questões da Teologia, dirimidas no seio da Igreja e sempre a raiar a heresia ou o desvio doutrinal. Atingiu-se então o ponto mais alto da controvérsia sobre a existência ou não de livre arbítrio e graça divina, nomeadamente na publicação da obra de Molina, anti-tomista declarada, A reconciliação entre o livre arbítrio e a concessão da graça, presciência divina, providência, predestinação e condenação da primeira parte dos artigos de São Tomás. A polémica azedou, era quase como que uma disputa entre as duas facções principais da Igreja, a da tradição (tomista, escolástica) e uma mais moderna, jesuítica dir-se-ia.
Assim, em resumo, para Molina a vontade humana nas acções livres não é só um instrumento de Deus – que é a causa principal – mas é também uma causa autêntica dos efeitos realizados, com a intervenção divina a ser considerada como simultânea e não como a causa precedente em relação ao exercício da própria acção. Deus atinge o seu objectivo através das vidas das criaturas genuinamente livres por intermédio da sua omnisciência. O modelo proposto apresenta o conhecimento infinito de Deus numa séria de três momentos lógicos (considerados nessa ordem não-cronológica, mas lógica): “conhecimento natural”, “conhecimento médio” e o “conhecimento livre”. Dito de outro modo: o conhecimento natural é o conhecimento do que é possível ou das possibilidades; o conhecimento médio, que é o conhecimento de como um ser possuidor de livre arbítrio (independência libertadora) poderia agir em qualquer situação; e o conhecimento livre, que é o conhecimento do que realmente acontecerá. O conhecimento médio, de Deus, desempenha um papel decisivo na concepção do mundo, na lógica e preparação do futuro. Deus e o conhecimento médio estão judiciosamente entre o conhecimento natural e o conhecimento livre, pelo que não destrói a liberdade de ninguém.
Em suma, os molinistas defendiam que para além de conhecer tudo o que se faz ou o que vai passar, Deus também sabe que as suas criaturas elegeriam livremente as suas acções se estivessem em qualquer circunstância. Uma liberdade, moderna, que a tradição tomista não via com bons olhos e a Igreja considerou falha, pois Deus, para os molinistas, era afinal… falível….
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa