Equidistância luso tropical
Dez ilhas, meio milhão de habitantes, 500 quilómetros da costa africana, eis, em breves pinceladas, o quadro do arquipélago de Cabo Verde, o “destino tropical mais próximo da Europa”, como gosta de apregoar o turismo local. As ilhas da “morabeza”, equidistantes do norte da América e do sul de África, estão a meio caminho entre a América do Sul e a Europa Central. Posição geográfica desde sempre aproveitada, sendo Cabo Verde, ao longo dos séculos, ponto de paragem obrigatória para todas as embarcações rumo ao Oriente ou ao Brasil. Na ida e no regresso. Por essa razão não é de estranhar a abundância de episódios ocorridos neste local, onde os portugueses criaram gado, plantaram cana do açúcar, algodão e colheram a urzela, ou dragoeiro, líquen a partir do qual se extraía uma tintura azul usada para tingir tecidos.
Agreste por natureza, a vegetação do arquipélago é escassa. A única espécie vegetal que sobrevive para contar a época dos Descobrimentos é o dragoeiro, largamente utilizado então na tinturaria. Constava na lista dos bens que permitiam acumular riqueza, pois era esse o principal objectivo de quem viajava. Quanto à abundância animal de que tanto falam os cronistas, restam pouco mais de sete dezenas de espécies de aves raras e uma pequena comunidade de babuínos.
Impulsionada pela actividade negreira e pela fertilidade dos seus solos, Santiago manteve-se como centro da vida económica, social e política do arquipélago, desde a chegada da caravela de Diogo Afonso, em 1460. Este navegador é considerado ainda o descobridor de outras quatro ilhas. As restantes cinco seriam avistadas por António Noli e Diogo Gomes.
Ribeira Grande, ou Cidade Velha, a primeira urbe europeia no continente africano, transformou-se num concorrido porto de escala que logo provocou a inveja das restantes potências europeias. Desde meados do século XVI, infestaram estas águas os mais temidos corsários da época, deixando marcas na paisagem humana, classificada hoje como Património da Humanidade.
Em 1585, Francis Drake arrasou e saqueou Ribeira Grande. Dez anos depois, voltaria para repetir o feito. Mas não era apenas o inglês, também franceses e holandeses acossaram permanentemente as costas das bravias ilhas, sobretudo Maio, onde iam buscar água e sal e o gado que por lá andava.
Sobre o personagem, escreve Jaime Cortesão o seguinte: “Em 1578, o corsário inglês Drake, no começo da segunda viagem à volta do mundo, deu caça a alguns navios na ilha de Santiago, tomando um deles e levando consigo Nuno da Silva, piloto, natural de Gaia, para lhe servir de guia ao longo das costas da América do Sul”. O inglês não só saqueou bens como raptou um português que o conduzisse, pois era incapaz de o fazer com os homens que tinha ao seu dispor. Portugal tinha na época os melhores pilotos e não havia navio de potência mercantil que prescindisse do serviço de um ou vários deles, e até capitães portugueses que, por vontade própria ou porque eram prisioneiros, participavam nas viagens transoceânicas, já abertas.
PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
Ribeira Grande desempenharia um papel de grande relevância ao longo do século XVI, sendo por isso aí instituída, em 1553, a sede da nova Diocese do arquipélago.
O que resta da Sé Catedral, emblemático edifício da era colonial, basta para nos dar uma ideia da sua imponência. Constituído por duas torres com portais clássicos, que certamente vieram já emparelhados de Lisboa, o edifício demorou muito tempo a ser construído. Sabe-se que, em 1589, o rei viu-se obrigado a adiantar 100 mil reais para a sua reparação.
Em bastante melhor estado apresenta-se a igreja da Nossa Senhora do Rosário. Na abóbada do tecto são visíveis as armas régias, a esfera armilar e a Cruz de Cristo, exactamente como na “catedral portuguesa” de Safi, em Marrocos. No chão, várias lápides tumulares com inscrições e brasões atestam a presença de fidalgos e religiosos.
Símbolo do poder municipal – onde a justiça e a injustiça eram aplicadas – o pelourinho foi objecto de restauro.
Numa ilustração holandesa de 1635 a cidade é-nos apresentada com os bairros de São Sebastião, de São Brás, de São Pedro, mostrando-nos duas ruas a intervalá-los. Nas ruas da Carreira e da Banana, dois dos troços viários ainda bem preservados, casas tradicionais funcionam como turismo de habitação.
Estabelecidos na ilha da Goreia, em frente ao Senegal, os holandeses tudo fizeram para se apoderar de Santiago. Os estragos desse constante e devastador assédio foram tais que muita da população branca optou por voltar ao reino, enquanto os negros e mestiços fugiam para pontos inacessíveis do interior, onde a topografia irregular das cordilheiras de origem vulcânica os protegia do invasor.
Ainda hoje, muitas das povoações dessa região têm nome de santos e santas. As mais importantes, porém, revelam as difíceis condições de acesso – Assomada, Boa Entrada – ou o nome de algum ilustre pioneiro, como é o caso das localidades Rui Vaz ou João Teves. Se o interior é beato, a costa limita-se a constatar a realidade terrena. As povoações ou são ribeiras, praias, portos ou achadas. A mais bela praia, a do Tarrafal. A verdadeira, a do campo de concentração de má memória, já que existem homónimas nas ilhas de São Nicolau e de Santo Antão.
MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS
As marcas destes movimentos migratórias mantêm-se na forma como está distribuída a população da ilha. Junto à costa é óbvia a presença de descendentes de europeus, enquanto no interior o substrato populacional é de raiz africana. A razão desse deslocamento não se deve tanto à fuga dos escravos à repressão, mas sim aos ataques dos corsários que flagelaram a costa durante séculos.
Para as proteger desse assédio foram erguidas fortalezas como a de São Filipe, datada do início do século XVI, na altura a principal fortificação da cidade. Impõe-se no topo do planalto, à entrada do centro histórico da Cidade Velha. Daqui obtém-se uma bela panorâmica. Visitei-a mas era uma fortaleza fantasma. Quase fui mandado abaixo das muralhas pelas fortes rajadas de vendo.
Em 1712, Santiago seria de novo vítima da rapina pirática, desta feita por parte de franceses que nem sequer o sino da catedral deixaram no seu lugar, obrigando a maioria da população a fugir para não mais voltar. As ruínas das muralhas e os canhões que a ousaram proteger são as testemunhas mudas do trágico acontecimento.
A transferência da capital da colónia acabaria por ser uma inevitabilidade histórica, não só devido ao desgaste dos ataques piratas como à sua falta de salubridade. A Vila da Praia, a dez quilómetros apenas, mandada fortificar em 1652, por ordem de D. João IV, e já com casas de pedra e cal, mostrava ser uma alternativa de peso. E foi para ali que foi transferida a capital, a mando do Marquês de Pombal, em 1770. Dos actuais 260 mil habitantes da ilha, cerca de 120 mil residem na Cidade da Praia.
Escondida ao fundo de uma angra que literalmente se enfia num enorme canyon, mas não suficientemente enorme para proteger a agora aldeia do irritante e ousado vento que durante todo o dia deste Domingo não pára de soprar tornando a tarefa de fotografar uma experiência muito desagradável. O vento também afasta as pessoas da rua e os poucos restaurantes aqui existentes não só fecharam as esplanadas como também as portas.
Joaquim Magalhães de Castro