ANTIQUA ET NOVA: DOCUMENTO DA SANTA SÉ ABORDA RELAÇÃO ENTRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E INTELIGÊNCIA HUMANA

ANTIQUA ET NOVA: DOCUMENTO DA SANTA SÉ ABORDA RELAÇÃO ENTRE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E INTELIGÊNCIA HUMANA

Identificar semáforos

A Santa Sé publicou há poucos dias um documento extenso acerca da inteligência artificial. O título, em Latim como de costume, é “Antiqua et nova”.

Esta tecnologia está ainda na fase de deslumbramento, própria de qualquer inovação. A imprensa foi uma revolução! O comboio, igual! E a luz eléctrica, o telefone, o rádio, o automóvel, o avião, a máquina de calcular!

Por vezes, a novidade gera confusão, sobretudo ao compará-la com a experiência comum. No Século XIX, quando um comboio a vapor completou a viagem inaugural, mãos caridosas cobriram com mantas a máquina, “a transpirar, resfolgante”, para evitar que se constipasse.

O telégrafo foi outro assombro. Tocava-se numa tecla e, do outro lado da rua, através dos fios, ouviam-se uns cliques. Edison explicava a transmissão à distância com a imagem de um gato muito comprido, pisa-se a cauda numa ponta e ele mia na extremidade oposta.

O impacto de uma grande inovação é enorme. Como é possível conversar à distância? Ou viajar pelo ar? Ou, tantas coisas?… Mas a surpresa dura pouco, banaliza-se e, rapidamente, as crianças acham normal que o frigorífico faça frio, as lâmpadas dêem luz, etc.

No início dos anos 70, num laboratório de Lisboa equipado com computadores arcaicos, os cientistas divertiam-se a mostrar ao público a sua máquina de pensar. Convidavam a escrever qualquer coisa, numa fita perfurada: “Bom dia, computador!” e, passados alguns segundos, uma impressora começava a crepitar numa fita de papel: “Bom dia, menino”. Vá, digam qualquer coisa, provoquem o computador! Um atrevido teclava: “O computador é estúpido” (obviamente, naquela época as letras não tinham acentos) e, ao cabo de alguns segundos de processamento, a impressora crepitava de volta: “Que mal-educado! É isso que lhe ensinam em casa?”. A reacção das crianças era engraçada! Mas o programa só tinha meia dúzia de respostas, que escolhia conforme as palavras recebidas, nem sempre adequadamente. Às vezes, diziam-lhe: “Que dia de sol!” e a impressora crepitava: “Que mal-educado! É isso que lhe ensinam em casa?”.

Recordo uma visita de estudo a um laboratório farmacêutico em que também vimos uma máquina de pensar… que fabricava pensos rápidos. O nome equívoco da máquina era fácil de entender, mas hoje há nomes ainda na fase de surpreender demasiado.

Alguns julgavam que era preciso pensar para fazer contas, até que apareceram as máquinas de calcular. Julgavam que era preciso pensar para identificar ou modificar fotografias, ou descobrir palavras num texto… por isso, a evolução tecnológica, ao questionar a identidade humana e o seu papel no mundo, pode ajudar-nos a compreender que a inteligência artificial é uma capacidade sofisticada de realizar tarefas, mas não é capaz de pensar.

Chamo a atenção que, para autores medievais como São Tomás de Aquino, fosse claro que a contabilidade, ou o processamento de imagem, não correspondem propriamente ao exercício da inteligência. Na Internet, para detectar os robots é prático pedir para identificar as imagens com semáforos, ou outros objectos, mas já faltou mais para que o computador consiga acertar nesse desafio.

Sobretudo, como diz o documento da Santa Sé, a inteligência faz parte do conjunto da vida humana, integra-se na totalidade do ser, espiritual, cognitivo, corporal e relacional. E ainda mais sublime que saber muitas coisas é o compromisso de nos cuidarmos uns aos outros, como diz São Paulo: «Mesmo que eu possua o dom de profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, e ainda tenha uma fé capaz de mover montanhas, se não tiver amor, nada serei» (1Cor., 13, 2).

Como observa o Papa Francisco na recente Encíclica Dilexit nos: “Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano”.

José Maria C.S. André

Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa

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