Memória da História e Jubileu 2025
O chamado “wokismo”, espécie de pseudo-religião de vítimas auto-eleitas, tenta cancelar vestígios e sentidos da memória cristã e constituir-se um puritanismo político-fanático narcisista. O fenómeno é, porém, uma nebulosa mais complexa de misturas confusas. Uns querem fechar a Europa a Cristo, outros fechar os povos à cultura cristã.
Numa viagem à Índia, visitei Chenay (Madras) para dar formação a candidatos à Ordem de São João de Deus. Ao dar uma volta por ruas de casas de ramos de palmeira em Ponnamallee, perto do monte onde terá vivido e evangelizado São Tomé, dei com um grupo de crianças sentadas no chão com os cadernos sobre os joelhos à volta de uma professora que me disse que, a pedido dos pais, lhes dava explicações de Inglês e Tâmil para recuperarem do atraso. A rua era a sua sala de aulas! Nesta região seriam frequentes as tensões mesmo entre sacerdotes católicos e os pertencentes à casta dos “dalits”. Já em 1987, em Bombaim, (Mumbai), um amigo da casta dos “brâmanes” defendia o sistema das castas apesar das desigualdades gritantes entre elas. Os católicos em várias regiões são mal-aceites por manterem escolas para os intocáveis. Alguns das castas altas criticam esta formação por facilitar a ascensão social e a ocupação de empregos a que as classes altas consideram ter direito; e por ficarem sem servos.
Ocorreram-me há semanas estes episódios, mais precisamente por altura do encontro do Grupo dos vinte países mais ricos e a mudança do nome de Índia para Bharah – tentativa inútil de apagar o colonialismo inglês e a sua tolerância pela escravatura nesses tempos. Torna-se paradoxal a pretensão de destruir as injustiças do passado quando alguns políticos hindus defendem as castas e toleram tantas opressões e violências de morte nas relações sociais hindus-muçulmanas-católicas actuais. A Fundação Ajuda à Igreja que Sofre regista algumas delas contra os católicos e outros grupos religiosos. Uma coisa é conhecer o passado no que teve de bom e nos erros cometidos para os emendar; outra é cancelar castigando os descendentes dos agressores das vítimas do passado ocupando o seu lugar de agressores.
Accionar o círculo vicioso da violência não torna melhor a sociedade actual. Pode alimentar o narcisismo orgulhoso de puros pretensiosos: Pior se não se dá pão a quem tem fome, não se lavam os pés nem se acolhem os humilhados da rua e os miseráveis refugiados perseguidos, como o Papa lamentou em Marselha. A militância contra quem descende dos opressores de ontem e passa a vandalizar e destruir estátuas, monumentos e obras de arte, tornará este mundo mais justo? Cancelar as memórias históricas, registos materiais e imateriais dos erros reais do passado ensinará a viver melhor?
O Cristianismo é celebração de fé e memória de Cristo. Jesus insiste (Mt., 18, 21-35) em que os cristãos perdoem as ofensas ao ofensor até sete vezes sete (sempre) partindo do facto de os pecados serem ofensas reais conscientes e lembradas. Não pede para cancelar o que aconteceu de mal, mas lembrar e perdoar. Por vontade de Cristo, o Cristianismo é fé de memória e gratidão. No “Pai Nosso”, Jesus ensinou a pedir perdão e a perdoar; na instituição da Eucaristia, do Seu “Corpo e Sangue”, Jesus pede explicitamente: “fazei isto em memória de mim”, ou seja, lembrem a Sua vida, paixão, perdão e morte; celebrem a oferta da Sua vida na Cruz por amor a todos.
Desde há 2025 anos que a Igreja celebra a memória de Cristo; e pede agora para preparar o Jubileu do Novo Ano Santo de 2025, sob o tema “Peregrinos da Esperança”. O logotipo diz-nos que vimos de Cristo na Cruz e caminhamos com Ele e não ao acaso. Na sua carta, o Papa propõe um ano de preparação dedicado à oração e à memória. Não é só Cristo que pede para celebrar a Sua memória. Toda a Bíblia é um monumento à memória da Humanidade como obra de Deus. Toda ela é uma narrativa de memórias humanas e de maravilhas acerca de Deus e dos Seus filhos. Todos? Nem sempre. Algumas páginas narram violências, injustiças, cativeiros e escravização. Muito sofrimento que não deve ser esquecido. Outras narram maravilhas e memórias, umas e outras, escritas para ajudar o povo de Deus e as comunidades cristãs a conhecer o sentido da sua vida e a celebrar essas memórias corrigindo o mal, a fazer e a agradecer todo o bem que Jesus e os Seus seguidores fizeram para aliviar os sofrimentos.
Destruir a Bíblia por narrar as más acções da Humanidade seria insensatez e não ajudaria a ser melhor no presente. Para viver o tema da oração do ano de preparação do Ano Santo as narrativas bíblicas são um meio indispensável. O Papa diz que o ano será vivido em “sinfonia” de oração. Cada Salmo, cada página do Evangelho, lidas em silêncio, pausadamente, já são oração e abrem o coração para outros modos de orar e de praticar boas acções de amor misericordioso em favor dos mais miseráveis e oprimidos como o Pai fez por todos.
Escutar e dizer coisas ao Senhor é orar e não é complicado. Cada um pode falar com Ele com as orações que Cristo ensinou: o Pai Nosso, a Missa, as palavras com que Ele perdoava, abençoava, falava com o Pai; as do anjo Gabriel e as de Santa Isabel, as de Simeão, do Centurião e tantas outras. E ainda fica tempo para as orações feitas por cada um com o coração e com o corpo todo a fazer o bem e a sofrer unido a Cristo.
Pe. Aires Gameiro
Membro da Ordem Hospitaleira de São João de Deus
LEGENDA:D. Rino Fisichella, pró-prefeito do Dicastério para a Evangelização, apresenta o logotipo do Ano Jubilar de 2025.
FOTO:@ Daniel Ibáñez/CNA