Sob o Signo dos temporais
Foi há dezanove anos a transição da colónia britânica de Hong Kong para a República Popular da China.
Um ano depois, e à primeira vista, nada mudara na cidade. As filas na imigração continuavam demoradas, os comerciantes de Tsim Sha Tsui teimavam em enganar os compradores de passo e os habitantes prosseguiam com o seu desporto favorito: fazer dinheiro.
Tal como prometera o novo Chefe do Executivo, Tung Chee-Hwa, tinham-se realizado eleições. Tripartidas. À maneira deles. Dos empresários pró-Pequim. No escrutínio de 24 de Maio, o único com sufrágio universal, saíra vencedor, tal como se esperava, o Partido Democrático de Martin Lee. Surpresa, surpresa fora a elevada taxa de afluência às urnas, 53,3 por cento, apesar da chuva torrencial que inundara o território. Essa participação popular fora, nas palavras do dirigente democrata, «um recado à China» para a necessidade de maiores reformas democráticas.
Desenganara-se, pois, quem imaginara que depois da pomposa entrada, nas primeiras horas da madrugada de 1 de Julho de 1997, de um contingente militar chinês com mais de quatro mil homens transportados em 400 viaturas, fragatas de guerra e helicópteros, o rosto de Hong Kong, a terceira maior praça financeira do mundo, iria sofrer uma operação de cosmética irreversível.
Aquartelada a tropa, depressa se desvanecera o fantasma EPL – Exército Popular de Libertação. Marcada pela maior das discrições, a sua presença revelava-se apenas nos soldados que montavam guarda ao edifício “Prince of Wales”, onde estava alojada grande parte da guarnição. Tal como as sentinelas do palácio de Buckingham, em Londres, também esses dois EPL’s se tinham tornado numa atracção, alvo das máquinas fotográficas dos turistas. Curiosa a escolha de semelhante prédio, símbolo do poder colonial, para centro nevrálgico militar…
Marc Hill, australiano que leccionava Inglês a quadros de empresas locais, era um dos poucos atentos a esse fenómeno. Falava do subtil aumento da presença militar numa outra caserna. Em Kowloon, ao lado do Instituto Politécnico. «Ao princípio havia apenas um soldado, depois eram já dois, semanas mais tarde voltava de novo a ser apenas um, mas armado com metralhadora», explicava. Passara-se o mesmo com os blindados estacionados nas imediações. Inicialmente houvera a preocupação de lhes colocar um camuflado em cima. Depois, nem isso. As mudanças (efectuadas nos bastidores) tinham sido deveras subtis. Camuflado o exército, só restava mesmo a bandeira e as novas insígnias da RAEHK (Região Administrativa Especial de Hong Kong) que entretanto se tinham diluíram por completo nos arranha-céus e nas passagens elevadas para peões.
Toda a faixa ribeirinha da ilha de Hong Kong, entre o terminal marítimo e o embarcadouro do histórico Star Ferry (ex-libris da antiga colónia britânica) era um estaleiro em permanente ebulição havia já vários anos. Importantes quinhões de terra tinham sido reclamados ao mar e infra-estruturas viam a luz do dia a uma velocidade vertiginosa. Não satisfeito com os edifícios Banco da China e Central Plaza, marcos da sua arquitectura futurista, Hong Kong erigia duas torres MTR (metropolitano), em Kowloon e Central, que ultrapassariam em arrojo e altura as glórias americanas da década de 1930 e cuja conclusão estava prevista para 2004. Mas era em Xangai que a China estava a construir aquele que, com 460 metros, seria o arranha-céus mais alto em todo o mundo: o World Finance Center.
Dissolvido o Conselho Legislativo (LegCo), eleito democraticamente por sufrágio directo, o primeiro grande golpe nos direitos e garantias democráticas a que a população de Hong Kong se fora habituando nos últimos anos de governação britânica, acontecera logo duas semanas após a megalómana cerimónia de transferência de soberania e com a activação da Legislatura Provisória eleita por Pequim. De uma assentada, vários diplomas e leis laborais – que preconizavam, entre outros direitos, o contrato colectivo de trabalho (uma verdadeira afronta na “capital da livre iniciativa”) – aprovadas no derradeiro plenário da extinta LegCo seriam anuladas, já que Pequim nunca reconhecera a legitimidade desses documentos. Tão pouco das reformas democráticas operadas pelo último governador, Chris Patten, e que tanto enraiveceram o Governo chinês. E não só. Muitos tinham sido aqueles, sobretudo os mais inconformistas, que não deixaram de ver um certo oportunismo nas súbitas reformas políticas oferecidas de bandeja, e “em jeito de rebuçado”, aos chineses de Hong Kong, escassos anos antes da passagem de testemunho.
«Os ingleses, ao instituírem o Conselho Legislativo em 1991, aproveitaram para sair em beleza de mais de um século de governação colonialista e autoritária, obrigando Pequim a vestir a pele de lobo mau», comentara Joseph Chu, activista dos Direitos Humanos. O seu colega Cheng Sze ia mais longe e mostrava-se irónico: «Não se percebe muito bem como é que em 156 anos de domínio os ingleses nunca se preocuparam com isso da democracia e Direitos Humanos e só o fizeram nas vésperas da transição…». Quem assim falava estava longe de simpatizar com Pequim. Todos os 4 de Junho, Chu e Sze lá estavam, vela acesa, de vigília, a lembrar o massacre na Praça de Tiananmen.
O Presidente Jiang Zemin, durante a cerimónia de transferência, lembrara o «conceito de Deng Xiao Ping, um país, dois sistemas» e prometera aos cidadãos de Hong Kong «direitos e liberdades de acordo com a Lei Básica» e um «desenvolvimento gradual da democracia». O certo é que, tal como se temia, as liberdades seriam as primeiras a ser ameaçadas. E logo a 16 de Julho, no plenário inaugural da Legislatura Provisória. Não só seriam anulados as leis elaborados pela anterior LegCo, como votados e aprovados treze diplomas, entre os quais a lei de Ordem Pública que preconizava a necessidade de prévia autorização das autoridades para qualquer tipo de manifestação de rua.
Joaquim Magalhães de Castro