O nosso tempo

Em torno da solidariedade

A saída do Reino Unido da União Europeia suscitou, como se sabe, uma onda gigante, um tsunami de debates e discussões, aquém e além Canal da Mancha, sobre os mais variados domínios e as mais diversas repercussões dessa magna decisão de os britânicos optarem por divorciar-se do continente a que pertencem.

Mas haverá (ou deverá haver) um pensamento cristão sobre esta questão? Inevitavelmente que sim, como em tudo. Mas para abordar este assunto de um ponto de vista religioso ou melhor ético, é sobre o social que ele acaba por recair. A questão está em saber como podem ser lidas as principais questões do debate, para além de terem sido sufragadas pelo voto de dezassete milhões de eleitores britânicos.

Quando a democracia se reduz à contagem dos votos, parece que tudo se cristaliza no momento de declarar vitória e milagrosamente tudo fica resolvido. Bem se sabe que não é assim.

Tomemos a questão da emigração que esteve no centro do debate do referendo. O fluxo de refugiados que noutros países europeus teve uma repercussão mais directa, mais forte, mais significativa do ponto de vista das reacções sociais, foi por si só bastante para determinar a vitória do Brexit sobre o Remain? Ou foi o tratamento populista desta questão que acabou por influenciar escolhas que poderiam ter sido mais racionais?

A questão social subjacente é a de saber se o Reino Unido se tornou, com o Brexit, um país mais desconfiado relativamente ao mundo exterior, digamos a palavra: mais egoísta, receoso de uma invasão de pobres que lhe ponha em causa a prosperidade e o conforto?

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Estamos tão habituados, hoje, a presenciar cenas de violência e a descrição de conflitos, nos ecrãs de televisão, que quase nos passam despercebidos os pequenos sinais de paz e de esperança que aqui e ali marcam a realidade com um pouco de luz, atenuando pelo menos o aspecto tantas vezes sombrio do nosso tempo.

A história que se segue, embora tendo decorrido há mais de sete décadas, é daquelas que são farol de luz intensa na noite escura. Poderia intitular-se, um tanto provocadoramente, “O poder curativo da mentira”… e é a história de um hospital católico de Roma recentemente galardoado, por o respectivo corpo clínico ter, durante a Segunda Guerra Mundial, inventado uma epidemia que nunca existiu, para reter sob quarentena, como falsos doentes, muitos judeus que, hospitalizados e incomunicáveis, sob aquele pretexto imaginário, foram poupados à loucura nazi-fascista e assim salvos da morte certa.

Este episódio é bem sintomático do quanto o proclamado anti-semitismo da Igreja, que a ter existido em certos sectores, foi saudavelmente desmentido por episódios eloquentes, da dimensão humana deste que acabo de referir.

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Noutro registo, completamente diferente, as comunidades cristãs e muçulmanas de Belém, na Palestina – a terra onde Jesus nasceu – estão a cooperar para, durante o Ramadão, cuidar especialmente dos mais necessitados, disponibilizando refeições confeccionados em colaboração para a mesma finalidade: socorrer os mais pobres. Muitos verão neste gesto uma cedência ou uma derrota na luta pela supremacia de uma Fé sobre outra, quando no fundo, atento o objectivo primeiro de ambos os credos, trata-se de praticar uma solidariedade activa, sem olhar a divisões.

Neste contexto, e como guia para a própria acção, ocorre pensar no significado especial das visitas dos Papas mais recentes, desde João XXIII, a mesquitas nos países onde estiveram ou visitaram. Alguns terão julgados blasfemos tais gestos, e todavia apontam para uma fraternidade, uma vizinhança, na acção… e na oração. É o caso da Turquia, onde o futuro João XXIII, Angelo Roncali, foi núncio apostólico, e são os casos das visitas de João Paulo II, Bento XVI e agora o Papa Francisco às mesquitas de países muçulmanos ou de maioria islâmica, não apenas para verem a respectiva beleza arquitectónica, mas para rezar, mensagem clara de uma união no essencial para além das divisões e incompreensões que a História foi gerando.

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A recente visita do Papa Francisco à Arménia foi talvez um dos exercícios de diplomacia vaticana dos mais complicados, dada a extrema sensibilidade com que as autoridades turcas vêm o massacre otomano de 1915 contra o povo arménio, recusando vigorosamente a sua qualificação de genocídio.

Mas vamos conhecendo a ousadia e a claridade do pensamento e da acção pastoral do Papa, que não se detém nas dificuldades do protocolo quando se trata de denunciar o sofrimento humano e suas causas. Honrando a Fé dos arménios, o Papa denunciou um dos crimes históricos com que o Império Otomano manchou a sua própria reputação de poder respeitador da liberdade religiosa, fiel à melhor tradição do Islão.

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De saudar, naturalmente, a recente reaproximação israelo-turca, depois de anos de acusações mútuas, a propósito da intercepção manu militari (com vítimas mortais) de um navio turco, portador de ajuda alimentar aos palestinos, há alguns anos atrás.

Claro que se percebem as razões geopolíticas e geo-estratégicas de tal reconciliação, num contexto regional marcado pela hostilidade dos vários extremismos, não podendo nenhum dos dois países pagar-se o luxo do isolamento. Mas para o isrealita anónimo, como para o homem da rua turco – e estive atento a tais reacções – importa acima de tudo a paz. Porque, numa região que concentra hoje o maior grau de conflitualidade, num mundo falsamente em paz, encharcados de violência estão todos.

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As FARC reconciliaram-se com o Governo legítimo da Colômbia, o Governo de Bogotá depôs as armas, e com a assinatura do acordo de paz um novo capítulo se inaugura para milhares de jovens e menos jovens que deixarão as matas, para iniciar o novo desafio de reintegrarem a vida civil, passando do uniforme de guerrilheiro ao fato de estudante ou à bata de uma qualquer especialidade técnica.

Diz-se que construir a paz é bem mais difícil que fazer a guerra. Também no interior das sociedades a reconciliação é exercício bem mais complicado do que a discórdia.

Uma casa que leva meses, se não anos, a construir-se, pode desintegrar-se com o simples detonar do adequado explosivo…

Carlos Frota 

Universidade de São José

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