A Quaresma

Humildade, Penitência e Conversão

Quarta-feira, dia 18 de Fevereiro. Quarta-Feira de Cinzas, início da Quaresma. Ou da “Quadragésima”, “Carême”, “Quaresima”, “Cuaresma”, ou “Lent”… Este último termo, actualmente usado no Inglês, mas de origem germânica, designa também, como os outros termos, os “quarenta dias de jejum” antes da Páscoa, embora na origem não significasse mais do que a mera estação da Primavera. Mas os “quarenta dias” estão sempre implícitos. De jejum, de preparação para a Páscoa. Os gregos designam os “quarenta dias”, já agora, por tessarakoste (o quadragésimo), um termo formado pela analogia com o Pentecostes (Pentekoste, ou “cinquenta dias”).

Como já se aferiu, a Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa, espiritual e liturgicamente, iniciando-se na Quarta-Feira de Cinzas e terminando na Quinta-Feira Santa (para ser mais preciso, até ao início da Missa da Ceia do Senhor, a qual já é do Tríduo Pascal). É um tempo de purificação e iluminação, sendo celebrada não apenas na Igreja Católica, mas também nas Igrejas Ortodoxas, Anglicana e várias outras protestantes, embora o seu início e período litúrgico ou celebrativo sejam diferentes.

A Quaresma é uma época de penitência e reflexão, por contraposição à licenciosidade ou maior desregramento do lustroso e alegre Carnaval (“carne vale”, ou vale carne). A Quaresma tem cinco Domingos, mais o de Ramos, nos quais as leituras se centram na conversão, na consciência do pecado, no perdão, na penitência. Mas não se fale da Quaresma como um tempo de tristeza, mas antes de contemplação, recato e regramento. Não se cantam o “Glória” no fim do acto penitencial na Missa, ou o “Aleluia” antes do Evangelho. A cor litúrgica é o roxo, cor de profunda interiorização neste tempo de penitência e conversão, de jejum e oração, uma cor que simboliza luto e sacrifício, mas também esperança, ou a espera de um grande acontecimento, o qual exige uma preparação cuidada. Como excepções, só no quarto Domingo se usa o rosa e no Domingo de Ramos o vermelho (ligado à Paixão).

São várias as referências bíblicas a esta “duração” de quarenta dias, à sua simbólica, desde a provação de Jesus durante 40 dias e 40 noites no deserto antes da sua vida pública. Quarenta foram os dias do dilúvio purificador, como 40 foram os anos de marcha no deserto por Moisés, até à Pesach, festa judaica equivalente à Páscoa, a “passagem” (para a Terra Prometida, do povo eleito a caminho da Salvação, da sua Páscoa). 40 x 10 dá 400, o número de anos do cativeiro dos judeus no Egipto, até Moisés os libertar. A carga simbólica do 4 e seus múltiplos, na Bíblia, mas não só, é muito importante, bem como fascinante.

A Quaresma existe na Cristandade quase desde o início desta, não como tempo litúrgico logo definido, mas como conjunto de práticas, ditas quaresmais, de preparação para a Páscoa, como o jejum. Tal é notório em vários lugares do Império Romano já no séc. II, na transição para a centúria seguinte. Com a tolerância de Constantino em 315, toda a Igreja se revigora. A Quaresma, por exemplo, é bem evidente no Oriente em 322, enquanto que a sua celebração só é documentada em Roma, a partir de 385. Era ainda um período indefinido em termos de tempo e liturgia, refira-se.

Foi em finais desse século que se deu a fixação em 40 dias, começando seis semanas antes do Domingo de Páscoa, ou, por isso, “Domingo da Quadragésima”. O conceito de Quaresma nestes tempos estava ligado à penitência pública e também ao catecumenado, os quais marcaram para sempre aquele tempo litúrgico, até aos dias de hoje. Nos séc. VI e VII o jejum assume-se como o elemento definidor da Quaresma. Mas surgia o problema dos Domingos, dias de festa de celebração do dia do Senhor, logo de não jejum. Por isso, no séc. VII, para respeitar os Domingos, mas manter os 40 dias de jejum efectivos, em memória e imitação dos 40 dias de Jesus no deserto antes da sua missão no mundo, juntaram-se mais 4 dias à Quaresma então em vigor. Ou seja, agregaram-se 4 dias antes do primeiro Domingo, pelo que a Quaresma passou a começar na Quarta-Feira de Cinzas e a contar 40 dias exactos (sem Domingos).

No princípio, a Quaresma era celebrada apenas nas reuniões eucarísticas dominicais, embora durante a semana existissem assembleias de fiéis às quartas e sextas-feiras, mas sem carácter eucarístico. Depois passam a haver assembleias às segundas também; este conjunto de “reuniões” passam a celebrar a eucaristia a partir do séc. VI, acrescentando-se, mais tarde, novas assembleias, eucarísticas, às terças feiras e sábados. A forte ligação do catecumenado a estes alvores da Quaresma conferiram desde logo a este tempo litúrgico um valor baptismal, para além do penitencial. A definição celebrativa da Quaresma só ficou assente no Papado de Gregório II (715-731).

E porquê as Cinzas na quarta-feira a seguir ao Entrudo, ou Carnaval, no começo da Quaresma? Já no séc. V, as quartas e as quintas-feiras anteriores ao primeiro Domingo da Quaresma (antes do tal acrescento de dias para fazer os 40 sem Domingos) eram já dias de celebração prévia, ou consideradas como fazendo parte do período penitencial, talvez para compensar os Domingos e dias em que se rompia o jejum. Naquelas quartas-feiras, então, os penitentes, pela imposição da cinza, ingressavam na ordem que regulava a penitência canónica. Quando esta instituição penitencial desapareceu, o rito da imposição das cinzas estendeu-se a toda a comunidade cristã: assim nasceu a Quarta-Feira de Cinzas, ou “Feria IV anerum”. A cinza (do latim cinis) tem forte carga simbólica também, advém do fogo, que purifica, símbolo de morte ou caducidade, mas também de humildade e penitência.

De referir que esta antecipação do jejum quaresmal não era, na origem, uma prática exclusivamente romana, pois encontrava-se também no Oriente, bem como em diversas regiões do Ocidente. Provavelmente esta tradição, segundo alguns, provém da vida monástica, da ascese contemplativa dos monges dos primeiros séculos do Cristianismo, irradiando depois para as comunidades cristãs.

 Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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