«We will survive!»
Numa das últimas viagens que fiz, tive como destino o Quirguistão. “Atrás” da China, abaixo da Rússia e do Cazaquistão, encravado nas montanhas da Ásia Central, por entre lagos e planícies, eis o Quirguistão, país de nómadas, cavalos e tradições. Mas não só: por lá reza-se, nem sempre de forma livre, mas reza-se e luta-se por viver o Evangelho.
O País é belo, sem dúvida, promissor, encantador até, vale a pena conhecer. Mas tentando conhecê-lo mais a fundo, descobrimos uma história milenar, marcada por turbilhões de conquistadores e pelas correrias e devastações, pelas marcas que por lá deixaram. Logo duas culturas são por demais visíveis e omnipresentes: o Islão e o Eslavismo (de matriz soviética a partir de 1926, depois russa desde 1991). Ambos dominam, não apenas na expressão religiosa do primeiro, mas também cultural e linguisticamente. O País tornou-se asilo de muitos povos deslocados na antiga União Soviética (1922-1991), principalmente no inverno do consulado de Estaline (1927-1953).
A República Socialista Soviética Quirguiz (ou Quirguízia) existiu entre 1926 e 1991, primeiro como República Socialista Soviética Autónoma Quirguiz (RSSA Quirguiz), até 1936, quando se tornou numa das repúblicas da URSS. Com tudo o que se aduza de laicização a partir do ateísmo oficial de Estado e da intolerância perante o sentimento religioso, mesmo em relação ao dominante Islão, a Igreja Católica praticamente não existiu até 1991, pelo menos oficialmente.
O estabelecimento da Igreja Católica, de forma institucional, teve lugar a 22 de Dezembro de 1997, quando se estabeleceu a Missão sui júris do Quirguistão, a partir da Administração Apostólica do Cazaquistão. Em 18 de Março de 2006, a Missão foi elevada a Administração Apostólica do Quirguistão, estatuto que mantém ainda hoje, directamente subordinada à Santa Sé e dependente do Dicastério para a Evangelização da Santa Sé. A Administração conta com um administrador apostólico, um administrador emérito e um superior emérito. Existe uma Nunciatura Apostólica no Quirguistão, que serve igualmente o Tajiquistão e o Cazaquistão. A Administração Apostólica, a cargo do padre Anthony James Corcoran, SJ, faz parte da Conferência dos Bispos da Ásia Central. O núncio apostólico, D. George George Panamthundil, reside no Cazaquistão.
Num país com 199 mil e 900 quilómetros quadrados de área, uma população por volta de seis milhões de habitantes, com capital em Bishkek (antiga Frunze, no tempo da URSS), a maior parte da população (cerca de 71 por cento) são quirguizes, uzbeques (cerca de quinze por cento), seis por cento de russos e um vasto número de etnias minoritárias, descendentes de povos ancestrais ou migrados, de forma voluntária ou forçada (efeito Estaline). Entre eles, destacam-se alguns alemães, polacos e ucranianos, que subsistem e de onde se extraem alguns dos cristãos do País. O Quirguistão tem 75 por cento de muçulmanos (oficialmente sunitas, maioritariamente, mas na realidade não-denominacionais, com apenas seis a dez por cento de praticantes) e ronda os vinte por cento em cristãos ortodoxos (tradição russa), mas com forte ateísmo ou laicização da sociedade, subsistem uns mil católicos. A maioria dos católicos são descendentes dos deportados pelo regime soviético, levados da Alemanha, Letónia, Lituânia, Polónia, além de estrangeiros que trabalham em organizações internacionais ou ONG.
O Cristianismo, historicamente, chegou ao Quirguistão no início da Idade Média (Séculos VII e VIII), através dos padres nestorianos monofisitas, que se instalaram nos itinerários da Rota da Seda e que tinha um ramo no que é hoje o Quirguistão. Desse tempo subsiste a lenda de num dos seus mosteiros, nestorianos, portanto, estarem as relíquias e o corpo do Apóstolo São Mateus, que teria morrido junto ao grande lago Issyk-Kul. Temos ainda alguns padres da Igreja cristã Assíria assinalados. Nos Séculos XIV e XV, os missionários franciscanos também estiveram no território, sempre na ligação com a Rota da Seda. Mais recentemente, chegaram alguns católicos no final do Século XIX – maioritariamente colonos polacos e alemães, não apenas católicos, mas também luteranos. Nas décadas de trinta e quarenta do século passado, dezenas de milhares de católicos da antiga URSS foram deportados para o Quirguistão pelo líder soviético Joseph Estaline, como já referi. A primeira paróquia legal foi criada na década de sessenta. No final da década de oitenta, os jesuítas assumiram o cuidado dos católicos deste país.
A organização pastoral realiza-se através de três paróquias e 22 centros de atendimento pastoral. Há presbíteros, sendo dois diocesanos e quatro padres jesuítas, além de cinco religiosas franciscanas e quatro missionárias da Consolata.
Para além da paróquia de Bikshek, os missionários assumem mais de vinte reuniões católicas espalhadas por todo o território nacional, cada uma com algumas dezenas de almas. A mais distante fica em Dzalalabad e é visitada por um padre apenas uma vez a cada dois meses, porque a estrada que atravessa as montanhas, com cinco mil metros de altura, é muitas vezes impossível de passar, principalmente no Inverno. Os paroquianos são maioritariamente polacos, mas também russos, alemães, coreanos e quirguizes nativos. A maioria são idosos e muito pobres, mas também há muitos jovens e crianças.
A Igreja Católica tem assim uma expressão numérica reduzida, mas pode-se dizer que se trata de uma semente bem enraizada no solo, que lenta, mas solidamente faz o seu caminho para conhecer de forma plena e regular a luz do Sol que é Cristo. A repressão religiosa durante a maior parte do século passado, durante cerca de setenta anos, foi contínua na Ásia Central, na luta pela erradicação da religião. Propriedades da Igreja foram confiscadas, execução sumária de clérigos, quando não a sua deportação, discriminação dos crentes no trabalho, na escola e no Partido. O ano de 1991 trouxe um certo alívio, mas as perseguições só mudariam no rosto do carrasco. O Quirguistão é a mais liberal das cinco repúblicas da Ásia Central, com maior pluralismo e uma aplicação mais branda das restrições religiosas, mas há perseguição por motivos de crença. O Cristianismo, nas suas várias denominações, é visto como algo ligado aos objectivos ocidentais de desestabilizar o poder político e, por isso, é suspeito. A excepção cristã é a da Igreja Ortodoxa Russa, que tem influência ainda e vê a Ásia Central como um seu “território canónico”, no qual tem direitos históricos de prevalência, em forte articulação, aliás, com o Kremlin.
Por outro lado, existem outras formas de perseguição. Embora não seja aplicada regularmente, continua em vigor uma lei religiosa repressiva de 2009 que proíbe a participação de menores em organizações religiosas, proíbe a distribuição de literatura religiosa e proíbe rigorosamente o proselitismo. Geralmente, a repressão da religião é mais visível no estrangulamento burocrático, como obstáculos à construção ou ao registo de igrejas, em vez de uma perseguição directa. Mesmo assim, em 2025 poderá estar pronta a catedral católica de Bishkek, um marco importante para a comunidade. As dificuldades continuam imensas: legais, institucionais, sociais. Cada missionário e cada crente tem que tentar não se molhar na copiosa e contínua chuva de restrições e proibições que vigoram, subtilmente… Apesar dos brandos costumes do País e da tolerância dos quirguizes, a realidade da Igreja Católica é mais lutar e sobreviver.
Vítor Teixeira
Universidade Fernando Pessoa