“Amor para sempre” é oposto de possessividade
«Havia sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu sem deixar filhos. O segundo e o terceiro, e mais tarde os demais, da mesma forma, casaram-se com ela; e morreram os sete sucessivamente, sem deixar nenhum filho. Na ressurreição, de quem ela será esposa, visto que os sete foram casados com ela?» (Lc., 20, 29-33).
Os saduceus, que não acreditavam na ressurreição dos mortos, colocaram esta pergunta a Jesus. É um caso complexo de “casamento levirato”, uma instituição patriarcal destinada a proteger uma mulher cujo marido morreu, permitindo que os irmãos do marido se casassem com a viúva. Mas não julguemos esta instituição à luz da mentalidade moderna. Numa época em que as mulheres tinham pouca autonomia, este tipo de lei tinha o objectivo de garantir que uma viúva pudesse ter algum meio de subsistência, principalmente quando não tinha filhos. Ainda assim, é inegável a sensação de que era, de certa forma, considerada um “bem” a ser herdado.
A pergunta no Evangelho deste Domingo (Lucas 20, 27-38) sobre a vida conjugal após a ressurreição é relevante. Iremos reconhecer-nos uns aos outros no Céu? Seremos capazes de manter conexões especiais e intimidade? Ou os nossos relacionamentos são apenas temporais e, logo, sem importância?
Recordemos que Deus criou-nos com a vocação básica de amar e viver em comunhão com Ele e uns com os outros. Somos seres “relacionais” e todos ansiamos por encontrar um “outro” que satisfaça os nossos desejos mais profundos de amar e ser amado, e do amor se tornar frutífero. O casamento simboliza de forma poderosa esta realidade.
Mas ninguém pode satisfazer completamente esse anseio. Há uma separação que é inerente à nossa individualidade. O coração humano é tão complexo e misterioso que a tarefa de nos tornarmos mais íntimos de alguém é infinita: os relacionamentos conjugais mais profundos e duradoiros são disso exemplo. Finalmente, a morte é a dolorosa experiência da separação que qualquer relacionamento precisa enfrentar, mais cedo ou mais tarde.
Quanto mais amamos, mais queremos “possuir” uma pessoa, por completo e para sempre. A realidade, no entanto, frustra constantemente este desejo. O amor eterno é impossível? Todos os relacionamentos terminarão com uma separação? Muito pelo contrário: no Céu, os relacionamentos não terminarão, mas serão totalmente realizados e completos. Toda a relação é, de facto, o sinal (e no caso do Matrimónio, um Sacramento) do amor de Deus pela Humanidade, cuja qualidade foi completamente revelada na Cruz: entrega total, abrangente, misericordiosa e oferecida a todos. Este amor é agora a nós oferecido por meio do Espírito Santo para que possamos experimentá-lo nas nossas relações humanas, nas diferentes circunstâncias das nossas vidas. As dificuldades que encontramos devem purificar os nossos relacionamentos e orientá-los cada vez mais para Deus.
No Céu este processo será completado, e Deus será tudo em todos (1 Coríntios 15, 28). Então, amaremos sem a necessidade de proteger a nossa própria individualidade, sem ser impedidos pelo mal ou pelo pecado, e sem o medo da separação causada pela morte. Amamos Deus em cada pessoa, e cada pessoa em Deus. Amemo-nos sem querer “possuir” alguém, exactamente da mesma forma que o Pai, o Filho e o Espírito Santo se amam dentro da Trindade.
Na vida terrena, através das nossas diferentes vocações, já somos chamados a amar deste modo. Longe de querer diminuir o valor das relações humanas, Deus atribui-lhes uma profundidade que é impossível para a Natureza Humana. Alcançamos essa profundidade através da “castidade”, virtude que não se restringe à esfera sexual: é a capacidade de viver as nossas relações segundo a verdade e orientadas para o destino final: a comunhão com Deus.
O Papa Francisco descreveu esta bela realidade de uma forma muito concreta, ao falar sobre São José: “Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir. Talvez seja por isso que a tradição, referindo-se a José, ao lado do apelido de pai colocou também o de ‘castíssimo’. Não se trata duma indicação meramente afectiva, mas é a síntese duma atitude que exprime o contrário da posse. A castidade é a liberdade da posse em todos os campos da vida. Um amor só é verdadeiramente tal, quando é casto. O amor que quer possuir, acaba sempre por se tornar perigoso: prende, sufoca, torna infeliz. O próprio Deus amou o homem com amor casto, deixando-o livre inclusive de errar e opor-se a Ele. A lógica do amor é sempre uma lógica de liberdade, e José soube amar de maneira extraordinariamente livre. Nunca se colocou a si mesmo no centro; soube descentralizar-se, colocar Maria e Jesus no centro da sua vida” (Carta Apostólica Patris Corde, ponto 7).
Quando, ao imitar os santos, tentamos amar nestes moldes (e todos o somos chamados a fazê-lo!), então o Céu já na terra encontra, nas famílias, nas comunidades e nos nossos corpos, mesmo que imperfeitos, «anjos, filhos de Deus, filhos da ressurreição» (Lc., 20, 36).
Somente este tipo de amor é, literalmente, amor eterno. O casamento termina nesta vida, mas o amor que expressamos nos nossos relacionamentos, incluindo o casamento e a amizade, será parte integrante da felicidade da vida eterna e, uma vez transformado pelo poder da Ressurreição, jamais será perdido.
Pe. Paolo Consonni, MCCJ