«A Igreja não pode ficar enclausurada no seu dogmatismo»
A Igreja tem de se mostrar sensível às aspirações e às expectativas do mundo que a rodeia, sem perder a noção da sua dimensão e singularidade. O veredicto é do padre João Lourenço, OFM, que ministrou ao longo da passada semana um curso bíblico sobre o Evangelho de São Marcos. O antigo reitor da Universidade de São José, que estudou e viveu em Israel, diz-se alarmado com a espiral de violência que tomou conta da Terra Santa ao longo dos últimos meses. O conflito, acredita, ainda assim só se resolverá através da via do diálogo. A entrevista a’O CLARIM.
O CLARIM – Regressa a Macau, desta vez, com uma formação sobre o Evangelho de São Marcos. Que importância tem Marcos no processo de edificação da Igreja?
PADRE JOÃO LOURENÇO – Antes de mais, uma saudação para todos os que nos possam vir a ler e a reflectir sobre as palavras que vamos trocar. Esta formação incide não apenas sobre as dimensões espirituais e religiosas de São Marcos, mas também do valor de Marcos como texto, como literatura das origens, como literatura fundamental. O Evangelho de São Marcos é um Evangelho relativamente difícil de ler, porque corresponde a um mundo muito heterogéneo, que é o mundo da Palestina, onde o acontecimento recorre; e o mundo de Roma, onde o acontecimento é vivido. Há aqui dois substratos, duas mundividências que se cruzam a que o redactor do Evangelho tem que dar continuidade e, de alguma forma, dar sentido, dar harmonia. Sem harmonia não se compreenderia. Por isso, de todos os três Evangelhos chamados sinópticos – Mateus, Marcos e Lucas – Marcos é verdadeiramente um Evangelho singular. De tal maneira é singular que ele foi pouco seguido na tradição da Igreja. Ou seja, ao longo de séculos, o Evangelho de Marcos era relativamente desconhecido ou, pelo menos, pouco usado. A sua redescoberta vem agora, com estas novas sinergias, com estes novos dinamismos criados a partir do Concílio Vaticano II, do regresso às fontes. Do ir às origens e não estar a tomar como referências os entremeios.
CL – É com São Marcos que começa a Igreja, verdadeiramente? São Marcos era uma criança quando se dão os acontecimentos da Páscoa da Ressurreição. Segue primeiro São Paulo e depois acompanha São Pedro até Roma…
P.J.L. – Não diria que é em Marcos que começa a Igreja, mas é Marcos que dá visibilidade literária àquilo que era a mensagem acreditada. O Evangelho de Marcos é o primeiro a ser redigido. E é a ele que Lucas e Mateus vão buscar muito daquilo que vão transmitir também nas suas narrativas. É claro que, depois Mateus, porque é um homem do mundo palestinense, e Lucas, que é um homem da cultura grega, vão dar componentes, vão dar feições complementares a essa dimensão de Marcos. Mas São Marcos está nas origens da Igreja, até por esta dupla perspectiva que referiu: é que ele é expressão de uma Igreja em expansão para o mundo grego, como foi com Paulo, que percorreu o mundo cultural da época, em todas as dimensões. Não sabemos bem porquê, o que terá ocorrido entre Marcos e Paulo, mas Marcos deixou o seguimento de Paulo e passou a seguir Pedro. E principalmente, Pedro – e isso é que é importante referenciar – como fundação da Igreja, no Ocidente, em Roma. Por isso, acho que a nossa Igreja ocidental, para além das matrizes culturais que tem, a partir do Evangelho de Lucas e, nomeadamente, de São João, deve muito a Marcos, porque foi à volta de Marcos que a primeira comunidade cristã na cidade capital do Império se foi consolidando.
CL – Falava da importância de se redescobrir os alicerces da Igreja e do trabalho que foi feito depois do Concílio Vaticano II nesse sentido. Este caminho continua hoje a ser seguido? De que forma é que encíclicas como a Fratelli Tutti e a Laudato Si reflectem os textos bíblicos?
P.J.L. – Como sempre sucedeu ao longo dos séculos, a Igreja, na sua estrutura, tenta ler os textos bíblicos um bocadinho a partir de uma perspectiva contextualizada, situada. Depois, cada Papa procura dar ao seu tempo uma certa sensibilidade, uns com mais abertura social, como é o caso do Papa Francisco, de uma maior escuta ao mundo que rodeia a Igreja, e outros um bocadinho mais a partir de dentro, que procuram lançar interpelações a partir de dentro. No último século, aquele que se mostrou mais a partir de dentro, porque era essa a sua formação intelectual, foi o Papa Bento XVI. Todos os outros foram de grande sensibilidade ao exterior. O Papa João Paulo II foi uma figura marcante na sociedade contemporânea, no último quartel do Século XX. Deu uma dimensão um pouco mais normativa do que interpelativa à Igreja. Francisco não se tem preocupado muito com as questões de natureza normativa. Procura mais atrair, incluir, chamar, mesmo aqueles que ainda andam muito longe ou nas franjas da Cristandade, mas o desejo de manter esta referência às fontes continua. A leitura que se vai fazendo destas fontes nem sempre é a mesma. Porquê? Depende muito da sensibilidade de quem está à frente, mas depende também, eu diria, das intuições que a própria Igreja vai sentindo a partir dos desafios que o mundo lhe faz. Hoje a Igreja tem grandes desafios à sua frente. Não pode ficar enclausurada no seu dogmatismo. O seu dogmatismo tem de ser traduzido em vivências, em expressões, em envolvências humanas e sociais que possam dar resposta aos anseios da sociedade. Caso contrário, o próprio dogmatismo acaba por definhar, por morrer, estéril.
CL – Mesmo que essa opção comporte riscos para a própria Igreja, como se vê com a reacção a esta recomendação, emitida pela Cúria Romana, de abençoar os casais em situação irregular?
P.J.L. – Sim. Mesmo que haja esse risco. A Igreja tem pela frente uma série de desafios importantes. Porventura, alguns carecem de ser mais amadurecidos. Mas são desafios importantes. Este desafio, por exemplo, enfim… é um grito. Mas é um grito positivo. Há gente que está a ver isso como um temor, associado à questão dos abusos. Ora, a Igreja não está a transformar está questão da bênção num Sacramento. Está a transformá-lo num rito de aproximação, num momento que pode conduzir as pessoas a reencontrar verdadeiramente o Caminho. E nisto, está a seguir os passos de Jesus: “Eu não vim para chamar os sãos, mas os doentes”. Ou seja, aqueles que precisam de ajuda para poderem empreender os seus caminhos, empreender os caminhos que os aproximam de Deus e da Humanidade. Portanto, tudo o que for feito, por parte da Igreja, em prol de uma abertura aos anseios do coração do Homem, é certamente positivo. Há, como sempre houve, necessidade de ir acompanhando estas situações e ajudar. Agora, a Igreja tem um desafio que é a luta entre a sua universalidade e a sua particularidade. Não podemos é alargar a todos os povos as mesmas sensibilidades.
CL – O padre João conhece bem a realidade da Terra Santa, onde estudou e onde viveu durante vários anos. Como vê o conflito que desde há meses grassa no Médio Oriente?
P.J.L. – Com muita preocupação porque não sabemos muito bem qual é o fim que isto vai ter. Este é o primeiro aspecto. Segundo: creio que não há uma solução que possa ser imposta. Tem de ser dialogada. Terceiro: acho que é importante que a sociedade, na sua globalidade, possa dialogar com todos e que todos se queiram fazer ouvir, o que neste momento não é o que acontece. O que acontece, efectivamente, é que há muitos grupos que querem impor a sua solução. Porventura, Israel também quer impor a sua. Mas nos movimentos, nos grupos, nas tendências do mundo islâmico, principalmente, nos que estão ligados àquele espaço geográfico, também querem impor a sua exclusividade, não aceitando o outro. Não vai haver uma solução para aquele território se não houver um roteiro de paz. Se as pessoas não forem capazes de, lado a lado – o que é muito difícil e eu acho que provavelmente não vai acontecer – se perdoarem mutuamente e iniciarem um caminho de mãos dadas. É muito difícil criar ali a situação para a qual toda a sociedade está mais ou menos preparada e que é a solução dos dois Estados. Conhecendo bem a geografia, a realidade social, a tradição histórica e a mentalidade cultural daqueles povos, eu não sei se é uma solução real. Tenho profundas dúvidas, ainda para mais tendo nós um Estado profundamente poderoso, militarmente falando, como é Israel, e um Estado que, depois, tem de ser militarmente neutro ou desarmado. Será muito difícil!
Marco Carvalho