O APELO DE UM ESTUDANTE BIRMANÊS, CATÓLICO, EM MACAU

O APELO DE UM ESTUDANTE BIRMANÊS, CATÓLICO, EM MACAU

«Precisamos urgentemente do apoio da comunidade internacional»

A propósito da situação calamitosa que se vive hoje em Myanmar, O CLARIM ouviu um jovem bayingyi, católico luso-descendente, presentemente a estudar em Macau. Tem nome e rosto mas não ousa partilhá-los nas páginas de um jornal; por medo de represálias que possam sofrer os seus familiares. Da aldeia onde nasceu, na região de Sagaing, «conhecida pelo fabrico artesanal de filigrana em prata», e onde até há uns meses viviam mil e 300 pessoas, restam menos de metade das casas. Tudo o resto é um monte de escombros.

O CLARIM– Mantém contactos com os seus conterrâneos bayingyis? Qual a actual situação?

ESTUDANTE BIRMANÊS –De há um ano para cá tem sido muito difícil manter contacto regular com amigos e familiares. Sempre houve problemas de rede e as ligações telefónicas são, na maioria das vezes, difíceis de fazer a partir do exterior. Para agravar a situação, desde Agosto estamos sem acesso à Internet; cortada pelos militares. Os meus conterrâneos, e os das aldeias vizinhas, vivem em constante sobressalto desde o início do ano, altura em que um grupo de soldados chegou e saqueou à vontade. Desde então têm regressado com assustadora frequência, obrigando as pessoas a fugir para locais mais seguros. A 12 de Janeiro mataram três inocentes. Com rédea livre, esses militares chegam a “visitar” a minha aldeia duas ou três vezes por mês e além das casas particulares vandalizaram também a igreja e o convento das freiras. A 7 de Junho incendiaram 122 casas, incluindo a da minha família. Mais de metade dos meus conterrâneos encontra-se refugiada nas paróquias da Diocese. Os meus dois irmãos mais novos partiram para o norte do País, onde vivem parentes nossos. A minha mãe permanece na aldeia com a minha avó, pois esta recusa abandonar o local onde sempre viveu. Estou muito preocupado pois não tenho forma de comunicar com elas.

CL– Pode falar-me das suas origens e da vida na aldeia quando era criança?

E.B. –Todos temos uma grande devoção a Santo António e a Nossa Senhora de Fátima. Infelizmente o meu pai faleceu um ano depois de eu ter chegado a Macau. A minha infância não foi diferente da de qualquer outra criança dessas aldeias espalhadas por um imenso vale delimitado pelos rios Mu e Chindwin. Para nosso sustento cultivamos o tremoço, o sorgo, o amendoim, mas também o milho e as favas. Distingue-nos dos camponeses budistas o facto de criarmos porcos, galináceos e gado bovino, e negociarmos a sua carne.

CL– O que significa ser bayingyi? Conhece a história dos seus antepassados?

E.B. –Desde muito jovem tive consciência das nossas diferenças físicas. Mais tarde, ao inteirar-me das minhas raízes portuguesas, graças às conversas tidas em família, é claro que me senti orgulhoso. Até porque ser bayingyi não só representa descendência directa dos portugueses, mas também, e sobretudo, ser católico. A Igreja Católica em Myanmar surgiu com os bayingyis. Com ela floresceu e se perpetuou até aos dias de hoje.

CL– Qual é a sensação de ser católico num país budista?

E.B. –Honestamente, não sentimos diferença alguma pelo facto de sermos católicos, apesar da imensa maioria das pessoas à nossa volta praticarem o Budismo. Todos nos afirmamos como cidadãos de Myanmar. Respeitamos as nossas diferenças, aprendendo uns com os outros. Vivemos em harmonia, pode dizer-se. Apesar disso, há sempre um ou outro fanático que nos considera estrangeiros, apesar de estarmos inteiramente inseridos na sociedade local, sendo o Catolicismo a principal característica que nos distingue. A figura do padre é muito respeitada, pois sempre foi o interlocutor privilegiado na resolução dos problemas entre a população e o poder instituído.

CL– Quando e porque veio para Macau? Foi difícil chegar aqui?

E.B. –Sou dominicano e vim para Macau em 2019 para fazer os estudos necessários para me tornar padre. Se não tivesse ingressado na Ordem Dominicana teria sido muito difícil ter chegado onde cheguei.

CL– Fale um pouco da sua vida em Macau. Sente-se em casa ou enfrenta muitas diferenças culturais?

E.B. –Estes últimos três anos têm sido uma experiência muito enriquecedora, contudo, devido ao que se está a passar no meu país, corro o risco não poder prosseguir os meus estudos. Quanto às diferenças culturais que refere, não as sinto. Estou como se estivesse em casa. Porém, a minha descoberta pessoal da cultura portuguesa, ainda bem viva em Macau, faz-me sentir um privilegiado. Macau é uma cidade única na Ásia.

CL– Tem contacto com a comunidade portuguesa local? Se sim, sabem que você é descendente de portugueses?

E.B. –Para ser sincero, até ao momento não tive ainda qualquer contacto. Apenas um dos meus professores, português, sabe que sou bayingyi.

CL– Ainda sobre a actual situação em Myanmar? Acha que os militares irão ficar no poder por muito mais tempo?

E.B. –A situação é bastante grave. As pessoas perderam a liberdade e não há qualquer segurança no País. É perigoso viajar; a qualquer momento pode estalar um conflito. E há muita gente armada… É difícil garantir o sustento diário, as crianças não podem ir à escola e o futuro dos jovens é cada vez mais incerto. Há quem se esforce para alterar a situação e não falta quem esteja pronto a dar a vida pela democracia. Mas isso não basta. Precisamos urgentemente do apoio da comunidade internacional. Que tarda. Só assim poderemos recuperar a nossa liberdade.

Joaquim Magalhães de Castro

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