JORGE SALES MARQUES, PEDIATRA

JORGE SALES MARQUES, PEDIATRA

«A Diocese fez muito bem em fechar as igrejas»

Ao fim de cinco anos em Macau, Jorge Sales Marques regressa a Portugal. O antigo director do Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar Conde de São Januário protagonizou ao longo do último meio ano uma intensa campanha de sensibilização na Imprensa e nas redes sociais para os riscos e as consequências da pandemia do Covid-19, e não poupou críticas à forma como Governos e cidadãos lidaram com o surto epidémico do novo coronavírus. Meio ano e mais de dezoito milhões de infectados depois, o pediatra deixa elogios ao Governo da RAEM, mas diz-se pessimista em relação à evolução da presente crise de saúde pública. Jorge Sales Marques em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM– Esta pandemia leva mais de seis meses. Como profissional de saúde está optimista ou pessimista em relação à evolução do Covid-19?

JORGE SALES MARQUES– Sinceramente, já fui mais optimista. Numa fase inicial, achei que, de facto, a pandemia poderia prevalecer durante menos tempo, atendendo que acompanhei a fase inicial em Macau e Macau, como venho a dizer há muito tempo, é um exemplo para o mundo. Macau tem as infecções dentro da comunidade controladas e o único caso que apareceu recentemente foi um caso importado. (…) Mas o momento que se vive… E não é necessário ir até à Europa ou aos Estados Unidos, basta irmos até à vizinha Hong Kong e vemos como as coisas estão e parece que estão cada vez pior: não se consegue controlar rigorosamente nada. Inicialmente as pessoas estavam convictas de que a pandemia do Covid-19 se ia prolongar por pouco tempo. Havia até quem dizia que até ao Verão iria passar. Depois passou para o Inverno e agora nem no Verão, nem no Inverno, nem no próximo ano. Isto tudo, na minha opinião, este avolumar dos casos, este ressurgimento dos casos em todo o mundo tem a ver fundamentalmente com uma não-colaboração entre a população e as propostas das autoridades sanitárias. Veja o exemplo de Macau: há uma completa comunhão em relação a tudo, não é? Não foi só na forma como foram acatadas as recomendações de isolamento, de afastamento entre as pessoas ou do uso de máscaras. Mesmo sem casos na comunidade, é raro ver uma pessoa sem máscara na rua. Eu acho que isto não teve um paralelo noutros países e noutras regiões. Esta falha tem a ver fundamentalmente com isto.

CL– A que é que se deve esta não colaboração?

J.S.M.– Penso que acima de tudo, o exemplo deve vir de cima e em países como os Estados Unidos, o Brasil e outros, em que a situação parece piorar cada vez mais, o que é possível perceber é que estes países não levaram esta crise de saúde pública a sério. Basta ver que há algumas medidas que até os próprios responsáveis por estes países se negam a cumprir: são os primeiros a dizer que isto não é nada, que é uma gripe. E depois há sempre seguidores, pessoas fanáticas, que votaram e que elegeram estes líderes e que os seguem cegamente. Isto tudo, na minha perspectiva, influencia muito a evolução e os resultados de cada país e de cada região. Esta questão, sem dúvida alguma, é muito importante. Mas, por outro lado, eu também acho que na fase inicial – e também já o disse por várias vezes – a Organização Mundial de Saúde também não se portou lá muito bem. Na minha perspectiva, deveria ter dado o sinal de alarme mais cedo, ter tomado as medidas que tomou mais cedo. Eu penso que a não utilização de máscaras numa fase inicial e que foi deixada, no fundo, ao critério de cada país, foi um erro crasso. Quer queiramos, quer não, a utilização da máscara poderia ter reduzido de uma forma significativa os números de casos e, consequentemente, o número de mortos em cada país.

CL– O uso de máscara deve ou não ser obrigatório?

J.S.M.– Neste momento, atendendo a que a situação não está controlada, eu sou da opinião de que a utilização da máscara deve ser obrigatória. E deve ser obrigatória em todos os países e em todos os locais. Porquê? Porque existem sempre pacientes assintomáticos. (…) A meu ver, as pessoas vão ter que começar a habituar-se a viver com Covid-19. O Covid-19 não é a mesma coisa que gripe, nunca foi como uma gripe e considerá-lo como tal foi um erro desde o início, desde o primeiro minuto, até em Portugal, digamos, em que foi dada esta ideia de que seria uma espécie de gripe e a partir daí todas as medidas, todos os esforços de controlo, atrasaram-se. Basta ver que o controlo das temperaturas só ao fim de cinco, seis meses, é que está a ser exigido. O controlo de uma série de coisas começou muito, muito tarde. Isto influencia, logicamente, todos os resultados de Portugal e de outros países. Todas as medidas que foram atrasadas por outro motivo, vão ter necessariamente influência nos resultados de cada país.

CL– Alguns dos primeiros grandes surtos fora da China estiveram, de uma forma ou de outra, ligados à religião. Aconteceu na Coreia do Sul com uma seita evangélica, mas no Irão também, onde na base do primeiro surto esteve uma peregrinação a Qoms, uma cidade santa do Islão. Aqui optou-se pelo contrário: as igrejas copiaram os casinos e chegaram a fechar portas. É uma opção consciente? Reinou o bom-senso?

J.S.M.– Penso que, acima de tudo, a Igreja Católica seguiu as orientações do Governo e dos Serviços de Saúde. E eu acho que fizeram muito bem, porque tudo o que seja acumulação de pessoas é um factor de risco. Já tive oportunidade de dizer por várias vezes que o vírus se alimenta de pessoas. Se não houver pessoas juntas umas com as outras, ele não se propaga. Se as pessoas não tiverem o cuidado de usar máscara, nomeadamente em locais fechados e com muitas pessoas, é óbvio que o vírus e a infecção por Covid-19 se pode propagar de forma exponencial. Portanto, eu acho que a Diocese fez muito bem quando decidiu fechar as igrejas. Foi uma medida correcta, foi uma medida ponderada e foi uma medida que, no fundo, seguiu as orientações emanadas pelas autoridades sanitárias. Acho que fizeram bem. Se repararmos, practicamente todas as instituições públicas e privadas de Macau seguiram estas orientações. E é de louvar, de facto, porque toda a população se uniu na luta contra o Covid-19 e os resultados estão à vista: não há casos entre a comunidade. O primeiro grande objectivo de controlo é evitar casos no seio da comunidade. E mesmo que surjam casos na comunidade, importa sobretudo perceber onde surgiu o contágio, de forma a cortar desde logo este ciclo vicioso. Caso contrário, a situação complica-se. Veja-se o que está a acontecer em Hong Kong, onde as autoridades diagnosticam não sei quantos casos, localizam a fonte de contágio de para aí trinta por cento e os demais andam perdidos. Estes pacientes não detectados vão continuar a infectar. Voltando à sua pergunta, eu penso que a Igreja Católica, mas também as outras religiões, seguiram à risca as orientações do Governo e das instituições de saúde, neste caso e, no meu entender, fizeram muito bem.

Marco Carvalho

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