INGEBORG GABRIEL, TEÓLOGA E PROFESSORA EMÉRITA DA UNIVERSIDADE DE VIENA

INGEBORG GABRIEL, TEÓLOGA E PROFESSORA EMÉRITA DA UNIVERSIDADE DE VIENA

«Temos de despertar para o real valor da nossa fé»

O futuro da Igreja passa, em grande medida, por fazer com que os católicos, a título individual, assumam as responsabilidades e a missão para as quais são convocados por Cristo. Foi esta a mensagem que Ingeborg Gabriel deixou perante uma sala cheia, esta semana, no Seminário de São José. No final do mês, a teóloga austríaca vai abordar o impacto da encíclica Laudato Si’ num debate sobre o ambiente e o futuro da nossa “casa comum”, a Terra. Professora emérita da Universidade de Viena, Ingeborg Gabriel, em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM – A constituição pastoral Gaudium et Spes trouxe uma nova perspectiva à Igreja, mas também novos desafios. Um deles – o discernimento – foi abordado por si esta semana. Permanece, pois, um obstáculo à forma como a Palavra de Deus é vivida pelos católicos?

INGEBORG GABRIEL – A Gaudium et Spes é um documento que foi adoptado em 1965. Um documento é em grande medida uma fonte de inspiração, e os católicos a título individual têm de interpretar e de saber como a podem aplicar no seu contexto. Isto constitui um grande desafio, mas também uma grande responsabilidade. Penso que o corrente Sínodo, que decorre no Vaticano, tenta realçar essa mensagem; a mensagem de que os cristãos, a título individual, têm que assumir as suas responsabilidades dentro das culturas em que vivem, segundo as suas possibilidades. Talvez ainda sejamos um pouco colectivistas na Igreja Católica, mas penso que aquilo que é pedido agora aos católicos é que assumam a sua responsabilidade individual e possam fazer a diferença na sociedade em que estão inseridos, seja através de contributos de ordem ética ou do ponto de vista da fé.

CL – A resposta está, portanto, num maior envolvimento…

I.G. – Sim, num maior envolvimento. Esse é outro aspecto que…

CL – …numa Igreja que vai mais ainda ao encontro dos povos e das pessoas…

I.G. – Sim, diria que sim. Como o actual Papa Francisco diz, temos a Igreja, mas a Igreja não são mais do que os católicos a título individual que tentam ir ao encontro dos que sofrem com a marginalização. E há diversos tipos de marginalização, seja ela social, intelectual ou ecológica. Ir ao encontro dos que vivem à margem da sociedade, ser corajoso. Esta é a interpretação que o Papa Francisco faz do Concílio Vaticano II e com a qual concordo plenamente.

CL – Necessitamos de um Concílio Vaticano III? Referia na palestra que conduziu que é necessário enraizar nos Evangelhos a solução para muitos dos desafios com que a Igreja se depara…

I.G. – Não me parece que seja necessário um Concílio Vaticano III para que isso aconteça. Apenas temos de ser realistas sobre quais são as questões mais importantes, sobre quais são as questões essenciais para a fé cristã. Actualmente, por vezes, damos uma importância desmedida a certas tendências de foro ideológico, que são de facto importantes, mas não são os aspectos e os dilemas essenciais que o Evangelho nos transmite, eu diria.

CL – A abertura da Igreja ao mundo preconizada pelo Vaticano II e pela Gaudium et Spes tornou a Igreja numa vítima fácil de uma sociedade cada vez mais secularizada? Por vezes, parece que este esforço de abertura fez com que as pessoas, mesmo as que não são católicas e que não acreditam, se sintam legitimadas a pensar que têm algo a dizer sobre o futuro da Igreja…

I.G. – Há correntes de secularização. O que eu penso é que temos de ensinar as pessoas a valorizar a sua fé, a ter orgulho na sua fé e a trabalhar para que tenham consciência da missão que têm para com o mundo. O Concílio Vaticano II destaca dois aspectos: rejuvenescimento – o regresso às fontes bíblicas e à teologia – e actualização (“ressourcement” e “aggiornamento”). Temos de ter a capacidade de os juntar. Talvez, durante algum tempo, não tenha existido um esforço suficiente em termos de Catequese ou no que toca a ouvir as pessoas. Na minha opinião, o Sínodo é importante porque procura fazer exactamente isso: dotar os católicos, a título individual, da missão a que estão destinados. Por vezes, temos tendência por nos escondermos atrás do Clero, permita-me que lhe diga.

CL – Não devia ter sido essa, desde logo, a prioridade da Igreja? Durante muito tempo, pareceu existir a perspectiva de que a Igreja estava mais interessada em convencer quem não acredita de todo, do que a reforçar a fé dos que acreditam. Agora, ao que parece, há um esforço para envolver os que foram baptizados e que receberam o Crisma para que possam assumir novas responsabilidades. Não devia ter sido esta, desde logo, a prioridade?

I.G. – Sim. Creio que é uma prioridade fundamental. E, a esse nível, não podemos esquecer que a Igreja Católica enfrenta, de certa forma, uma competição por parte das igrejas evangélicas e de outros movimentos similares. Mas a verdade é que também podemos aprender com elas e procurar perceber qual é a nossa responsabilidade individual dentro da Igreja. Por outro lado, parece-me que a forte ordem hierárquica que era dominante, particularmente na Europa, também tem a sua dose de responsabilidade, uma vez que não sublinhou suficientemente a importância da vivência individual da fé, a beleza e a relevância da mensagem. Era uma Igreja demasiado defensiva e eu creio que esse continua a ser um dos problemas. Temos de despertar para o real valor da nossa fé, para a beleza da nossa fé.

CL – No final do mês, vai ser oradora numa segunda palestra, desta feira sobre a Laudato Si’ e a causa ambiental que a Igreja abraçou com o Papa Francisco. Que relevância tem esta encíclica? Trouxe algo de novo a um debate que se arrasta há décadas sem suscitar consenso?

I.G. – Creio que é muito relevante. Surge já um pouco tarde, é necessário que se diga. A Igreja Católica não se envolveu no passado com a vitalidade que lhe era devida, mas a encíclica Laudato Si’ é excelente, em mais do que uma dimensão. Teve um grande impacto, dentro e fora da Igreja. Se vai ou não abrir a porta a grandes mudanças nas conferências internacionais, já é outra história, mas isso foi algo que os grandes actores internacionais também não conseguiram fazer. No entanto, parece-me um contributo muito válido, que fez com que muitos actores sociais, que não são católicos, olhassem com muito respeito para a Igreja. Muitos deles, por causa da Laudato Si’ iniciaram uma relação muito positiva com o Catolicismo. Parece-me, ainda assim, que a aceitação da encíclica também teve que ver com a realização de muitas iniciativas que evidenciaram os dilemas em que estamos mergulhados com esta aposta no crescimento ilimitado. Esta questão dá o mote à minha próxima palestra. É imperativo que encontremos novos caminhos. Tenho esperança que as palavras – e que pequenos gestos quotidianos – nos ajudem a reencontrar o caminho certo.

Marco Carvalho

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