ANDREI IWANOWITSCH, SOBREVIVENTE BIELORRUSSO DO CAMPO DE BUCHENWALD

ANDREI IWANOWITSCH, SOBREVIVENTE BIELORRUSSO DO CAMPO DE BUCHENWALD

«Nunca senti que Deus me tivesse abandonado»

Tem 98 anos e uma força de viver incomensurável. Andrei Iwanowitsch Moiseenko esteve na passada quarta-feira na Universidade de São José para recapitular a história que Hannes Farlock, actual responsável pela delegação da Câmara de Comércio e Indústria da Alemanha em Hong Kong, contou em “Ja, Andrei Iwanowitsch”. O documentário revelou a Macau, e na primeira pessoa, os horrores do Holocausto. Andrei, o último sobrevivente bielorrusso do campo de concentração de Buchenwald, e Hannes, cineasta por «obrigação moral», em entrevista a’O CLARIM.

O CLARIM – Andrei, tem quase 98 anos, mas pelo que vimos na sessão é um jovem de coração. Mais jovem, eu diria, que muitos de nós. Qual é o seu segredo?

ANDREI IWANOWITSCH – O segredo é nunca perder a esperança e, basicamente, trabalhar para que isso aconteça. Nunca perder a esperança e acreditar. Quando fui abordado pelo Hannes e ele me falou da possibilidade de fazer um filme, apenas lhe perguntei: “Quais são os teus planos? Qual é o teu objectivo com tudo isto?”. Percebi depois que os planos não eram nada de extraordinário e que ele queria, pura e simplesmente, dar a conhecer a minha vida. No início fiquei um pouco surpreendido. Por que razão alguém havia de ter interesse em me filmar? Por que teria interesse na minha vida? Mas foi assim que se desenrolou e o resultado está à vista. Mas eu não fiz nada de muito especial. Limitei-me a aparecer, de certa forma.

CL – Ficou, ainda assim, feliz por ter conhecido o Hannes? Por ter tido a oportunidade de contar a sua história?

A.I. – Estou muito feliz e também muito agradecido, em particular ao Hannes, porque, como sabe, para além do campo de concentração e da região de Buchenwald, e mesmo quando havia cerimónias evocativas, nunca saí da zona onde vivo. Sempre trabalhei e nunca tive a oportunidade de viajar para lado nenhum. Agora, que tenho esta oportunidade para ver o mundo, para viajar, para conhecer novas pessoas e para contar a minha história, estou muito, muito feliz e sinto-me também muito, muito abençoado.

CL – Como se sente por ser o último sobrevivente bielorrusso de Buchenwald? Teme que o que ali aconteceu e noutros campos de concentração possa cair no esquecimento?

A.I. – Não há futuro, sem o passado. Isto é algo que eu insisto em lembrar e é algo que as pessoas devem ter em mente. Esta percepção é muito importante e esse é uma das razões pelas quais eu fico feliz por este filme ter sido feito, por me ter sido dada a oportunidade de falar sobre as minhas experiências e sobre tudo pelo que passei. Vivemos, actualmente, tempos pouco promissores no sentido de que tudo aquilo em que as pessoas pensam é nos seus próprios interesses: não pensam sobre o futuro, estão apenas concentradas nelas próprias e no momento. Esse é o maior dos perigos e o maior dos riscos.

CL – Hannes, preocupa-o que o Andrei possa ser uma das últimas vozes que experimentaram na pele os horrores do Holocausto?

HANNES FARLOCK – Bem, na verdade, estou bastante feliz por o ter encontrado. Ele até costuma brincar com isso, ao dizer: “Fizeste uma escolha sensata, até porque dos quinhentos sobreviventes do Holocausto que estiveram em Buchenwald e que viviam na Bielorrússia, só resto eu”. O Andrei é o último e, se pensarmos nisso, acaba por ser constrangedor. Mas, para mim, foi e continua a ser uma bênção. O Andrei é uma pessoa muito humilde e faz questão de me lembrar que o filme não é mais do que o fruto de uma coincidência. É pura coincidência ter conhecido o Andrei, tal como é pura coincidência que ele tenha sobrevivido e que ainda esteja vivo, ao fim de todos estes anos. Foi, de certa forma, uma questão de sorte e eu sinto-me afortunado por ter conhecido o Andrei.

CL – É alemão e a Alemanha esteve do outro lado da barricada, no que toca ao Holocausto. Sendo alemão, sentiu que tinha a obrigação moral de dar o conhecer Andrei Iwanowitsch ao mundo? A responsabilidade moral de informar as pessoas sobre o Holocausto?

H.F. – Diria que temos essa obrigação moral, embora muita gente na Alemanha, particularmente nos dias de hoje, negue que o Holocausto tenha acontecido e esse é um dos maiores problemas. Temos partidos de extrema-direita em ascensão e isso é um fenómeno que me deixa preocupado. Há mesmo partidos que dizem que isto foi apenas uma pequena e pouco relevante nódoa na nossa História. Isto faz com que o testemunho de pessoas como o Andrei seja ainda mais relevante. É isso que procuramos fazer, eu e o Andrei. Todos os anos vamos à Alemanha, em particular a regiões que faziam parte da antiga Alemanha de Leste, e visitamos escolas. Falamos com os alunos e mostramos que essa nódoa não foi assim tão pequena. Pessoalmente, acredito que a nação alemã e que as próximas gerações do povo alemão têm a obrigação de manter a memória do Holocausto vivo, têm a obrigação de falar sobre o Holocausto e eu sinto que este sentido de responsabilidade está a desaparecer aos poucos, e isso é algo que me deixa bastante preocupado.

CL – A vida de Andrei é, em certa medida, um bom retrato do que foram os excessos do Século XX, primeiro sob o regime nazi e depois sob a égide da União Soviética. Alguns destes excessos parecem ter ressurgido nos últimos anos, por um lado com a invasão russa da Ucrânia e, por outro, com o conflito em Israel e na Palestina. Esta vinda a Macau e Hong Kong tem alguma mensagem implícita? Ou trata-se apenas de uma coincidência?

H.F. – Não. Quando o filme foi feito, ninguém estava à espera que o panorama hoje fosse esse. Tendo vivido na Ucrânia, na Bielorrússia e na Rússia, devo dizer que fiquei chocado. Tive de abandonar a Rússia por causa da guerra. Agora vivo em Hong Kong, mas vivi durante algum tempo na Rússia. Mas não! Se há alguma mensagem implícita é só a percepção de que é hoje, mais importante do que nunca, espalhar a mensagem, até porque a Humanidade não está propriamente a ficar mais inteligente. A História tem, infelizmente, tendência para se repetir e é por isso que é importante manter viva a memória do Holocausto. O filme tinha essa mensagem como propósito. É uma mensagem forte, até porque o Andrei ainda está entre nós, testemunhou esses tempos negros e teve a coragem para contar a sua história. É sempre boa altura para falar. Ele ainda está vivo, está disponível para viajar, para nos mostrar o que viveu e para falar sobre isso.

CL – Sente que deu um segundo fôlego de vida a Andrei Iwanowitsch e à história dele, por meio deste documentário?

H.F. – Não. Honestamente, não acho que isso tenha acontecido. O que sinto é que para viver uma vida tão longa como a do Andrei não basta apenas ter uma vida saudável, praticar desporto e comer alimentos saudáveis. O aspecto energético, o aspecto espiritual, também é importante. Acho que é isso que o faz continuar a viver e que o faz feliz. Há uma troca implícita no filme. O que o filme faz é permitir que iniciemos um diálogo: com os estudantes, com as crianças, com todo o tipo de pessoas, de todos os quadrantes da vida e de diferentes países e regiões. Esta é uma experiência que é para ele verdadeiramente única, até porque não está acostumado a viajar. Esta é a primeira vez que viaja para outro continente e que está noutra região, que não a Bielorrússia e a Alemanha. Veio a Macau e a Hong Kong, e esta experiência, parece-me, transmite-lhe uma energia muito positiva. É muito importante para ele que a sua voz seja escutada, que alguém o oiça, que as pessoas tenham interesse na história que tem para contar, até porque no seu próprio país, na Bielorrússia, ninguém está interessado no que ele tem para dizer. Valorizam os veteranos de guerra, mas os sobreviventes do Holocausto não aparecem na narrativa, em particular na narrativa da ideologia do Estado. Histórias como a de Andrei estão a sucumbir à voragem dos anos. É por isso que esta viagem a Macau e Hong Kong é tão importante.

CL – Andrei, um dos aspectos mais admiráveis desta sua passagem por Macau é a sensação de esperança e de optimismo que transmite. Passou por algumas das piores realidades que a Humanidade arquitectou, mas irradia esperança e positividade. Alguma vez sentiu que essa esperança se estava a desvanecer? Alguma vez duvidou de Deus?

A.I. – Nunca tive qualquer dúvida. Sempre tive Deus no coração e na alma, e nunca senti que tivesse desaparecido ou que me tivesse abandonado. Ele esteve sempre lá e sempre senti que estava em mim e comigo.

CL – Gostava de deixar alguma mensagem às novas gerações?

A.I. – De um modo geral, as pessoas querem paz. Querem viver uma vida tranquila, mas como tive oportunidade de repetir, não depende só delas. Depende dos líderes mundiais, em particular de países como os Estados Unidos da América, a Rússia, a China e a Índia, e da forma como se comprometem com a paz. Esse é o factor decisivo. Somos todos humanos, todos queremos paz, todos queremos ter boas relações com os nossos vizinhos e usufruir de uma vida tranquila, mas nem tudo está nas nossas mãos e é por isso que devemos encorajar e cultivar o entendimento mútuo, devemos promover a misericórdia e mostrar compaixão e misericórdia quando for caso disso.

Marco Carvalho

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