A importância da tradição familiar
Porque uma pessoa não vive apenas do trabalho, alturas existem em que temos necessidade de fugir à rotina e fazer algo completamente fora do normal.
Isto soa melhor vindo de outra pessoa… Já vindo de alguém que deixou tudo e se fez ao mar com uma criança de um ano de idade, largando para trás uma vida cheia de regalias e de mordomias, não tem o mesmo impacto.
Na manhã do nosso dia de folga, bem cedo, fizemos quase quatrocentos quilómetros – a criança faltou à escola sem justificação nem aviso-prévio. O destino: Évora! O objectivo: participar numa prova de vinhos! Na realidade, Évora, cidade Património Mundial da UNESCO, não foi o nosso destino final, mas sim, mais precisamente, a Herdade da Ervideira.
Claro está que se íamos participar numa prova de vinhos, requer o bom senso que pernoitássemos por aquelas bandas. A escolha recaiu no hotel Vitória Stone, bem perto do centro histórico da cidade de Évora; uma escolha que não poderia ter sido melhor pois a unidade hoteleira de quatro estrelas vale todas as centenas de euros que cobra por noite. E não apenas os quartos valem o preço: almoçámos no restaurante do hotel, no quarto andar com uma vista agradável sobre a cidade, e fomos surpreendidos com novas interpretações de pratos alentejanos bem conhecidos. Vale a visita e o “rombo” na carteira! Devíamos ter ficado mais uns dias para aproveitar tudo o que a cidade e o Vitória Stone têm para oferecer, mas infelizmente não houve tempo e nem sequer nos deliciámos com a piscina e a sauna.
Após o almoço fomos para a Herdade da Ervideira, localizada bem perto de Reguengos de Monsaraz, a mais de trinta quilómetros de Évora. Uma irresponsabilidade para quem ia provar vinhos, mas fizemo-lo com todo o cuidado.
A herdade é pequena (cerca de 130 hectares), se comparada com outros latifúndios alentejanos. Fomos recebidos com amabilidade e logo conduzidos numa visita guiada às instalações. Explicaram-nos todo o processo de fabrico do vinho, desde a vindima, que é feita de noite devido ao calor de Agosto e Setembro, por meio de um processo totalmente mecanizado. As uvas são transportadas em camiões frigoríficos, congeladas e levadas novamente à sua temperatura ambiente já na linha de produção. Ali são produzidos brancos, tintos, rosés, espumantes e até vinhos licorosos. Uma oferta bastante variada para uma herdade tão pequena, e por isso não é de admirar que as quantidades sejam pequenas quando a aposta é o mercado internacional.
A Ervideira LC iniciou a produção em 1880; é uma empresa inteiramente familiar, sendo que a quinta geração que a detém, à semelhança das gerações anteriores, esforça-se por manter vivo o legado do trisavô da família, o Conde D’Ervideira, ou seja, manter valores que aliem a tradição à inovação. Segundo nos explicaram durante a visita, a empresa orgulha-se de primeiro contratar funcionários locais, pois quer continuar a ser um forte elemento de estabilidade social na região.
A produção anual ronda as oitocentas mil garrafas, cujo néctar provém dos 160 hectares de vinha própria. Apenas um dos vinhos, uma variante hoje muito em moda, o vinho BIO, é fabricado com uvas adquiridas a um primo da família que se dedicou à produção estritamente biológica (isto é, sem recurso a qualquer tipo de químicos) de uvas para vinho na região.
Embora não produza as mesmas quantidades de outras casas agrícolas, a Ervideira LC exporta grande parte da sua produção, sendo que a China e o Brasil absorvem metade das garrafas enviadas para o exterior. Com menor peso aparecem outros vinte países, distribuídos um pouco por todo o mundo.
Sendo uma empresa que pretende continuar a ser familiar, não quer que os seus funcionários se sintam excluídos, optando por um tipo de gestão muito próxima. Pormenor interessante é o facto de todos os funcionários serem tratados como colegas e pelo primeiro nome. Um pormenor, entre outros, que faz com que todos trabalhem com dedicação, seja na vinha, na área administrativa ou nos diferentes pontos de venda e de promoção da marca (os apelidados locais de EnoTurismo, onde se dá a conhecer a pessoas como nós).
Após sermos presenteados com uma detalhada explicação sobre o processo vitivinícola, em que ficámos a saber muito mais sobre vinho – inclusivamente descobrimos que para produzir vinho branco não são precisas uvas brancas –, chegou o tão ansiado momento da prova.
Sentados numa ampla sala, com vista sobre a extensa vinha, vieram os brancos, os tintos e os espumantes. E até, a nosso pedido, o dito vinho BIO. Este último surpreendeu-nos mas ao mesmo tempo deixou-nos a pensar sobre a verdadeira necessidade de haver vinho BIO… Claro que sabemos o quanto o mundo está envolvido nesta nova vaga do eco-politicamente correcto. Enfim, mais uma das tais coisas que somos obrigados a engolir… – se bem que desta vez até nem custou pois gostamos de um bom vinho.
Viemos com um saco cheio de garrafas, das que mais gostámos, tendo o BIO ficado para trás. O propósito de o provar foi meramente profissional. Havemos de incluir uma opção BIO na carta de vinhos do Dee Thai Eatery, pois também queremos “estar na moda”…
Ao todo, foram quase duas horas a beber vinho e a comer queijos e enchidos alentejanos, que tão bem casavam pelas mãos dos nossos anfitriões.
Se tiverem oportunidade e curiosidade, e poderem viajar – os nossos leitores de Macau, por exemplo, podem viajar mas estão muito condicionados, principalmente aquando do regresso a casa –, aconselho uma visita demorada à Herdade da Ervideira. Está sempre aberta ao público, mas sugerimos que se telefone a marcar a visita, por medida de cortesia.
Depois de cumpridos mais trinta quilómetros, já de volta a Évora, fomos ver o Templo de Diana, passear pela cidade e meter a cabeça dentro de alguns templos religiosos, enquanto fazíamos tempo para a hora do jantar. Infelizmente, foi um passeio turístico feito a correr dado que no dia seguinte, logo de manhã bem cedo, tínhamos de estar em Aveiro para abrirmos o restaurante, preparar tudo e servir os primeiros clientes.
João Santos Gomes