Filhos de Abraão
E lá estive, invisível, em Bagdade, em Najaf, em Ur, em Mossul, em Qaraqosh, em Erbil… e em toda a parte ouvi palavras não só de condenação da violência sectária – num país devastado pelo extremismo mais cruel –, como palavras de reconciliação, verdadeiro teste à sua Fé e ponto de partida, de recomeço, para a comunidade cristão do Iraque e para os seus irmãos muçulmanos de boa vontade.
Mas revejo o filme, rapidamente, na memória…
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O palácio presidencial na capital, as boas vindas, depois de uma breve conversa com o chefe do Governo, que o acolhera na pista do aeroporto, à chegada.
Mas o Papa Francisco não foi ao Iraque para se encontrar nem principalmente com Barham Salih, o Presidente, nem com Mustafa Al-Kadhimi, o Primeiro-Ministro. Embora, claro, nas sua funções de Chefe de Estado do Vaticano, tal como os seus antecessores, tenha por interlocutores habituais, nas deslocações ao estrangeiro, os líderes nacionais dos países que visita. Encontrando ambos, chefes do Estado e do Governo, a sua abordagem foi uma única, relativamente aos desafios com que se defronta a sociedade iraquiana, entre paz e desenvolvimento, por um lado; entre violência, sofrimento e atraso para todos, por outro. Entre a coexistência multi-religiosa pacífica, ou o extremismo que tem desperdiçado as energias vitais do País, a começar pelos milhares de vítimas, desde a invasão americana de 2003. Mas também, numa referência aos desenvolvimentos políticos mais recentes, os desafios da classe política ao flagelo da corrupção, à ineficácia governava, que deixa desconfiada uma juventude sem futuro, apesar das riquezas naturais do País.
O GRANDE AYATOLLAH SISTANI
Dois momentos fortíssimos desta viagem apostólica do Papa. O encontro com o Grande Ayatollah Sayyid al-Sistani e a oração pelas vítimas da guerra em Mossul, cidade ocupada pelo ISIS durante três anos e que pretendeu fazer dela a capital do seu “Califado”.
Mas primeiro essa casa modesta, numa rua vulgar, de uma cidade iraquiana altamente simbólica – Najaf –, quase totalmente desconhecida no Ocidente, excepto para gente versada em História das religiões. Esse o primeiro destino do viajante.
E ali estava ele, de semblante sorridente, o incansável promotor da paz, o peregrino de muitas jornadas em busca de co-obreiros de um mundo melhor. O sorriso desse mensageiro especial adivinha-se tímido, num primeiro momento, mas nele, particularmente nele, é a Mensagem que sobretudo conta.
SÓ A PRESENÇA BASTA!
Foi para estar pouco menos de uma hora junto do seu anfitrião que o encontro se deu. Os media farão o resto através do mundo, os jornalistas escalpelizarão o significado do momento, os historiadores registarão o facto único, e os escolares e clérigos de ambos os lados farão passar as únicas mensagens que podem alterar as vidas concretas, as de fraternidade real, na certeza de um destino humano comum.
De facto, muitas vezes só a presença basta para varrer quase completamente esse lixo da alma que se chama ódio. Ou, menos que ódio, incompreensão. O que, com o decorrer do tempo e havendo quem atice o espírito de divisão, vai inevitavelmente dar ao mesmo.
E ali vimos um irmão, vindo de longe, visitar um outro irmão, em lugar remoto. Com que objectivo? Pois levando na bagagem uma simples mensagem de reconciliação, de compreensão, de respeito e proximidade, assim iniciando o mais improvável dos contactos pessoais, entre interlocutores de um diálogo essencial, que a História registará.
Al-Sistani é o maior ponto de referência religioso, teológico e jurídico para os muçulmanos xiitas no Iraque, e não só. O encontro é considerado histórico, por ser a primeira vez que o Papa Francisco reúne-se com um expoente do Islã xiita, o que poderá trazer bons frutos não só para o Iraque como um todo, mas em particular para as comunidades cristãs e minoritárias.
Durante a visita, o Santo Padre sublinhou a importância da colaboração e da amizade entre as comunidades religiosas para que, cultivando o respeito mútuo e o diálogo, se possa contribuir para o bem do Iraque, da região, de toda a Humanidade.
O ENCONTRO HISTÓRICO
Foi uma ocasião para o Papa agradecer ao Grande Ayatollah al-Sistani por, com a comunidade xiita iraquiana, diante da violência e das grandes dificuldades dos últimos anos, ter levantado a sua voz em defesa dos mais fracos e perseguidos, afirmando a sacralidade da vida humana e a importância da unidade do povo iraquiano.
Ao despedir-se do Grande Ayatollah, o Santo Padre reiterou a sua oração a Deus, Criador de todos, por um futuro de paz e fraternidade para a amada terra iraquiana, para o Médio Oriente e para todo o mundo.
Al-Sistani agradeceu os esforços do Papa para ir ao seu encontro em Najaf.
O Grande Ayatollah falou da “injustiça, da opressão, da pobreza, da perseguição religiosa e intelectual, da supressão das liberdades fundamentais e da falta de justiça social, em particular das guerras, dos actos de violência, do bloqueio económico e do deslocamento de muitos povos na região, que sofrem, em particular, entre outros, o povo palestino nos territórios ocupados”. Sistani enfatizou ainda no encontro “o papel que os grandes líderes religiosos e espirituais deveriam desempenhar em tentar pôr fim a essas tragédias, e o objectivo esperado no exortar as partes interessadas – especialmente as grandes potências – a priorizar a razão e a sabedoria e rejeitar a linguagem da guerra, a não sobrepor o seu interesse ao direito dos povos de viver em liberdade e dignidade”. E sublinhou a importância dos esforços concertados para consolidar os valores da harmonia, da convivência pacífica e da solidariedade humana em todas as sociedades.
O Grande Ayatollah “desejou todo o bem e felicidade ao Sumo Pontífice, aos seguidores da Igreja Católica e ao público em geral, agradecendo-lhe ter insistido em ir a Najaf, para fazer esta visita”.
NA CIDADE EM RUÍNAS DE MOSSUL
O símbolo forte que a memória reterá. O Papa Francisco solta uma pomba branca durante uma oração pelas vítimas da guerra em “Hosh al-Bieaa”, na Praça da Igreja, na Cidade Velha de Mossul. Grande parte da cidade velha foi destruída em 2017 durante a batalha sangrenta travada pelas forças iraquianas e por uma coligação militar internacional para expulsar o Estado Islâmico.
O Papa viu ruínas de casas e igrejas numa praça que era o próspero centro da cidade velha antes de Mossul ser ocupada pelo ISIS de 2014 a 2017. E Francisco orou cercado por esqueletos de edifícios, escadas de concreto penduradas e crateras de antigas igrejas.
Residentes muçulmanos e cristãos na destruída cidade iraquiana de Mossul contaram ao Papa Francisco o que foi o horror das suas vidas sob o domínio brutal do Estado Islâmico, enquanto o Pontífice os abençoava exprimindo o voto de a cidade ressuscitar das cinzas e recordava o princípio cristão de que «a fraternidade é mais durável do que o fratricídio».
«Juntos dizemos não ao fundamentalismo. Não ao sectarismo e não à corrupção», disse o arcebispo caldeu de Mossul, Najeeb Michaeel, ao Papa.
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E assim fica concluído, pensei eu nestes dias, o duplo abraço fraterno às duas famílias do Islão, com o sunita Al-Tayeb com quem assinou a Declaração de Abu Dhabi, e agora com o Grande Ayatollah Sistani, uma das figuras mais reverenciadas do mundo xiita.
Carlos Frota