Inospitalidade, Paul Cézanne e o Papado de Avignon
Nem só de trabalho vive o homem, costuma-se dizer. Por isso, no início de Setembro, decidimos que também era o momento de irmos de férias antes do início das aulas da nossa filha – começam a 20 de Setembro. Como somos adversos a “férias cá dentro”, metemos a “Dee sobre rodas” na estrada e, uma vez mais, rumámos ao centro da Europa.
Foram as primeiras férias gozadas sem o nosso companheiro de tantas viagens, um Buldogue Francês, nascido na Formosa, que já nos deixou. Mas, como quando uma porta se fecha outra se abre, o Panda, um Barbado da Terceira, veio parar à nossa vida depois do seu dono anterior, um nosso amigo dos tempos de Timor-Leste e funcionário de longa data da RTP, ter falecido subitamente de cancro.
São espécies animais completamente diferentes, especialmente em tamanho! Mas por incrível que possa parecer, com comportamentos muito semelhantes… em tudo! A ambientação à vida sobre rodas foi completamente tranquila.
Saímos de Portugal com rota marcada para a Suíça, país que nunca havíamos visitado e que estava na nossa lista fazia algum tempo. Passados dois dias já estávamos estacionados junto ao estádio de Yverdon-les-Bains, uma cidade plantada junto ao lago de Neuchâtel, onde temos alguns amigos.
Depois de visitados os amigos e com uma oferta de trabalho (!) decidimos sair da Suíça rumo a outro destino, que também nunca visitámos.
Para os portugueses, especialmente para quem vive no centro ou norte da Europa, as viagens para França e para os países situados a Norte passam sempre pelo norte de Espanha e pela fronteira de Hendaia. Raramente se opta pela fronteira do sul, junto ao Mediterrâneo, pois obriga a perfazer quase mais mil quilómetros! Daí que tenhamos aproveitado a ida à Suíça para descer ao sul da Gália e aproveitado para visitar Cannes, Saint-Tropez e outros destinos bem conhecidos desta costa mediterrânica. Pelo caminho quase tivemos tempo para visitar um amigo de Macau e Hong Kong, o Edwin Ho, mas infelizmente, devido ao completo caos na cidade de Cannes, foi impossível encontrar local para estacionar a autocaravana.
Organizámo-nos mal, ou pura e simplesmente tivemos pouca sorte – no nosso entender, claro! –, dado que coincidiu estarmos em Cannes no fim-de-semana do Festival Internacional de Iates, que faz com que a cidade fique completamente lotada, à semelhança de todos os outros eventos que se realizam nesta cidade francesa.
Se em dias (ditos) normais, toda esta costa já é difícil para quem circula em autocaravana, neste período de grande afluxo de visitantes torna-se impossível encontrar estacionamento para um veículo que tem seis metros de comprimento…
Se tínhamos alguma expectativa relativamente a Cannes, rapidamente perdemos a vontade de um dia voltar devido à pouca receptividade da autarquia e das suas gentes para com quem adere a este estilo de vida. Não há infraestruturas, nem muita vontade por parte dos pessoas locais em bem acolher quem viaja de autocaravana, algo que em toda a França nunca havíamos sentido. Aliás, este país é o que oferece as melhores condições para este tipo de turismo. Em todas as cidades, vilas e aldeias existem áreas de serviço para que as autocaravanas possam esvaziar as águas sujas e os tanques das casas-de-banho, e voltem a encher os tanques de água potável; em muitas dessas áreas de serviço até deixam pernoitar gratuitamente.
No caso da Côte d’Azur, as denominadas “Aire” são inexistentes e os parques de campismo (em abundância, diga-se) são de péssima qualidade: caríssimos, apinhados de gente e agora – devido à pandemia de Covid-19 – só se aceitam pessoas com certificado sanitário.
Apesar da inexistência de áreas de serviço, a visita a Saint-Tropez foi bem mais agradável. Deu para almoçarmos, estacionados ao lado da baía, enquanto víamos os super-iates e veleiros. Não deu para pernoitar, mas também não era essa a nossa intenção. Havíamos planeado dormir em Aix-en-Provence, a cidade das mil fontes. O próprio nome reflecte a abundância de água existente na região – “Aix” significa fonte de água.
Esta cidade do sul de França tem muito para ser visitado, mas o que mais nos cativou foi o local onde nasceu, trabalhou e morreu Paul Cézanne. O ícone máximo da pintura pós-impressionista que nos deixou quadros como “Os Jogadores de Cartas”, o “Monte Sainte-Victoire”, o qual ainda hoje se pode ver sobranceiro à sua cidade natal, ou a obra-prima de natureza morta “Mesa, Toalha e Fruta”. A obra deste pintor francês sempre me cativou e poucas vezes tive a oportunidade de ver ao vivo os seus trabalhos. As suas telas marcaram um período de transição para a pintura moderna e são um marco incontornável na história da arte. Infelizmente morreu novo, aos 67 anos, em 1906, de pneumonia, após ter sido apanhado por uma tempestade enquanto pintava um quadro no exterior. Foi encontrado inanimado por um local que o trouxe até à sua casa, onde foi reanimado por um dos seus empregados. Após acordar, insistiu em querer continuar a pintar a obra que tinha em mãos. Voltou a perder os sentidos e nunca mais voltou a sair da cama. Repousa agora para a eternidade no cemitério de Saint-Pierre em Aix-en-Provence.
Passados quase dois dias, continuámos a viajar – sempre junto ao Mediterrâneo –, o que permitiu visitar algumas cidades lindíssimas, como Avignon, Nimes e Montpellier, antes de atravessarmos a fronteira mais a sul, entre França e Espanha.
João Santos Gomes