Crónica de um Verão diferente
Pego lentamente na caneta e ponho-me a vaguear, um pouco, através da página em branco, sobre o que me vai passando pela cabeça.
– What is in your mind?, perguntaria logo o omnipresente Facebook. E eu respondo: Verão atípico este, de 2021, como aliás o anterior, num mundo transformado pela pandemia. Mesmo os mais recalcitrantes em jurar que quase tudo está na mesma, preferindo subestimar as mudanças para valorizar uma “normalidade” afinal já caduca, mesmo esses têm que notar que viajar não é fácil (e nem sempre é possível); e que hoje é mais prudente consultar primeiro as autoridades sanitárias dos seus (improváveis) destinos turísticos, do que ir directamente às reservas “online” dos vôos para os habituais paraísos de outrora.
Antes pois das fotos com praias a perder de vista, mar azul e coqueiros… é preferível ter na mão o certificadozinho de vacina, e mesmo assim…
CONCLUSÃO (PROVISÓRIA)
…manda o bom senso que ponhamos a imaginação ao serviço do mais acessível dos programas de férias, preferindo “ir lá fora… ficando cá dentro”, com a subopção (possível para muitos) que é a da mudança breve para um dos hotéis de Macau que oferecem condições para os turistas internos que, a troco de alguns milhares de patacas, viajam sem viajar, fingindo que vão para outro destino, sendo que tal destino é mesmo ali ao lado, por exemplo no “país de todos os sonhos” (até para quem ganha nos casinos…) – país que dá pelo nome de… COTAI…
Devo acrescentar imediatamente que nunca joguei nem penso jogar nos casinos, tal significando, segundo a lógica mais rigorosa, que não tenho qualquer hipótese de vir a ganhar…
A OUTRA OPÇÃO…
A outra opção é ainda mais radical. É ficar rigorosamente em casa, embarcando em todas as viagens que os bons livros proporcionam. Não se perdendo a “monotonia divertida” (!?) da nossa rua, do nosso bairro, do supermercado habitual. E podemos mesmo esquecermo-nos de tudo isso por algumas horas diárias, ao sabor da imaginação de cada autor escolhido.
E depois há, naturalmente, os passeios digitais pelo que a YouTubeLândia proporciona, de países visitados por outros, mas que connosco partilham o que as suas câmaras registaram.
Enfim, hoje o que não faltam são as múltiplas escolhas para percursos pessoais… sem sair de casa, com a excepção saudável do passeio higiénico pelo quarteirão, com ou sem cão ligado ao dono pela coleira, para este ir detectando os vestígios “históricos” das paragens críticas do animal!
AS NOTÍCIAS NÃO PÁRAM
Mas há o nosso pequeno universo – e o resto do mundo. Claro que as notícias não páram e a vida não se suspende. A crise no Tigray, protagonizada a repressão por um homem que, ainda há dois anos, recebeu o prémio Nobel da Paz. E depois a súbita erupção de violência na África do Sul, por causa da prisão do ex-Presidente Jakob Zuma. O assassinato brutal do Presidente do Haiti. Manifestação em Atenas pelos que se opõem à vacinação anti-Covid. Bolsonaro que precisa de ser operado (as melhoras rápidas, são os meus desejos)…
…e depois… e depois tudo o resto, os milhões de vidas anónimas de gente como nós e que compõem connosco a totalidade da família humana.
E, já noutro registo, o melhor e o pior “made in UK”: o primeiro voo no espaço do multimilionário fundador da Virgin, Richard Branson, e de um pequeno grupo de acompanhantes; e o racismo contra o jogador britânico Marcus Rashford, por ter falhado o “penalty” que teria dado ao Reino Unido o título de campeão da Europa.
Vá lá que o príncipe William e depois seu pai, o herdeiro do trono, Carlos, defenderam nos media a face oficial de um país que se quer decente.
***************************
E quanto às preocupações de saúde pública globais, todas as autoridades nacionais estarão mesmo, sem relaxe, de olhos fixos nos gráficos preocupantes da evolução da pandemia. Das suas linhas ascendentes. E o futuro incerto que tudo isto encerra.
Mas hoje um outro elemento de interesse se junta a quem gosta de observar os comportamentos colectivos: o da reacção de cada grupo etário às restrições impostas para conter o flagelo, desde as atitudes razoáveis e cautelosas de uns às desafiantes de outros, o que nos conduz a interrogações essenciais sobre o valor da solidariedade, como base da cidadania.
Aqui o choque parece evidente, entre a cultura do individualismo, confundido com a protecção de liberdades fundamentais e interesses colectivos.
Cumpre registar que a Igreja Católica tem sido exemplar no cumprimento das directivas emanadas das autoridades nos mais diversos países, o mesmo não se podendo dizer de certas denominações ditas cristãs e outras, de cuja afluência massiva aos cultos depende a sua solvabilidade… empresarial.
A NOSSA IGREJA E O MUNDO
Sempre com a atenção orientada para o que se passa na nossa querida Igreja Católica, tão vilipendiada porque a muitas forças convém o seu descrédito, vejo que o Santo Padre já regressou ao Vaticano, depois da intervenção cirúrgica a que, com êxito, foi submetido.
Antes do seu internamento o Papa recebera o Secretário de Estado americano Anthony Blinken, mas o teor da conversa não foi revelado. Sabe-se que é mau este momento que a Igreja Católica americana está a passar, com a respectiva Conferência Episcopal a braços com o espinhoso problema de se ter de pronunciar sobre as opções em matéria de ética do actual partido maioritário e do Presidente que, assumidamente católico, endossa tais opções que integram a respectiva plataforma programática.
Situação obviamente delicada, quando está em causa o próprio acesso do Presidente à integralidade da sua prática religiosa, mais cavando a divisão entre americanos.
*************************
Lá segui a oração do Ângelus de Domingo, da varanda do quarto do Hospital Gemelli onde Francisco esteve internado. Vimo-lo rodeado de crianças doentes.
E porque nem tudo são preocupações, o nosso bem amado Francisco, Mario Jorge Bergoglio noutra existência, fã de futebol, teve duas alegrias a celebrar, há dias, as vitórias da Argentina e da Itália nos campeonatos sul-americano e europeu, respectivamente. E vimo-lo sorrir e rir mesmo, de forma aberta e franca, com essa espontaneidade que latinos-europeus e latino-americanos têm em comum.
FUTURO INCERTO
Tenho pensado frequentemente no nosso Pontífice nestes últimos tempos, mais porventura porque no Afeganistão tudo se orienta para uma segunda tomada do poder pelos Talibãs, na sequência da partida dos soldados americanos.
E porquê a associação de ideias entre o Papa e o extremismo islâmico? Pela simples razão de que, se tem havido área da diplomacia vaticana onde é mais visível o empenho pessoal de Francisco, é exactamente a do estabelecimento de laços com o mundo islâmico, sunita e xiita, numa corajosa tentativa de ultrapassar mal-entendido do passado que integram o capital de queixas da ideologia extremista.
O objectivo partilhado é o de eliminar o capital de queixas que teimosamente persiste na retórica radical. Mas o califado talibã, prestes a renascer, constitui indirectamente uma machadada nos esforços convergentes do Islão moderado e de cristãos (e outros) para se consolidarem, no diálogo inter-religioso fraterno, as bases do relacionamento futuro.
Mas o discurso radical islâmico, como forma extrema de populismo, apresenta-se rentável no Oriente, como as congéneres ocidentais o são noutras paragens.
Carlos Frota
LEGENDA:
Francisco na varanda do seu quarto no Hospital Gemelli