Castelos de Areia
Há algumas semanas já, as minhas deambulações pela “web” conduziram-me a imagens de praias que me lembraram as da minha infância, em África. Talvez para reavivar a memória do que foi o meu chão e a minha casa, numa terra generosa e boa. Tão próxima do paraíso (é assim que leio, numa espécie de retrospectiva de criança) quando nem sequer sabia que os paraísos existiam.
E, de súbito, deparou-se-me um conjunto de fotos de castelos na areia, uns mais perfeitos do que outros, naturalmente. E cuja simbologia me pareceu intimamente ligada a algo sobre que venho pensando, com cada vez mais insistência, em tempos recentes.
PENSANDO EXACTAMENTE EM QUÊ?
Na aparente solidez dos castelos de areia (alguns deles, reproduções perfeitíssimas dos originais ou dos idealizados pela cabeça prodigiosa dos escultores de praia) – e todavia condenados, desde o início, a reduzir-se a nada, sob a pressão constante das ondas. Como todas as construções de que o Ser Humano é autor, afinal, concluo com o fatalismo quase resignado.
Quem constrói na areia edifica só para aquele momento, sabendo que ele inexoravelmente passa. E depois o que sobrevive? O nada, nem sequer vestígios que enganem o nada.
Foi há um pouco mais de uma década que visitei Angkor, aproveitando uma deslocação oficial ao Camboja. A monumentalidade e o requinte das construções esmagou-me. E também o frio gélido das suas pedras mortas, como se um cataclismo tivesse, de súbito, imobilizado a vida esfuziante de uma comunidade inteira, abandonada, desde então, à erosão do tempo.
Nunca tinha tido uma noção tão nítida do que é estar-se numa espécie de cemitério gigantesco, de uma campa só, perante o túmulo não de uma pessoa, mas de uma civilização inteira!
Lembro-me de me ter sentado discretamente, por momentos, num sítio isolado, procurando na solidão do instante uma espécie de inspiração do alto, sobre o significado profundo do que estava a viver. Aquelas pedras falavam. E eu pus-me a escutá-las.
ANGKOR, INCAS, MAIAS…
Como nascem e morrem as civilizações? As causas são múltiplas, desde as naturais até às que dizem respeito a erros de liderança política, militar ou de ambas…
Roma era a Cidade Eterna… e afinal não foi! A pujança do Império Romano, a capacidade de expansão da sua influência muito para além das margens do Tibre, e vieram os bárbaros! E o Império Britânico, tão vasto que nele o Sol nunca “adormecia”. Onde está ele?
Será esta a trágica alegoria da História dos homens? As magníficas construções em ruínas, os palácios vazios, os templos onde já se invocou Deus, convertidos em café ou supermercado, como se vê hoje na velha Europa – as ruínas de velhas civilizações reduzidas hoje a sítios turísticos, o apogeu de países, de impérios e o seu declínio!? Para não falar da expansão das ideias e a sua superação por novas… ou por antigas, a fingir de novas!?
Mas não será também outra, a lição da História? Que em lugares diferentes do planeta, povos ressurgem com novas esperanças, decididos a abandonar o subdesenvolvimento de construir uma nova modernidade?
TUDO MUDA, TUDO É TRANSITÓRIO
À aspiração arrogante de eternidade em quase tudo o que faz, o Ser Humano confronta-se com a inevitável subjugação a forças – infinitamente maiores! – que nem sequer compreende.
Se este meu pessimismo não é sintoma de alguma doença da alma, a inquietação histórica e filosófica que exprime é quase certamente privilégio dos anos vividos já, “muito” maduros portanto. De muito ter comparado. De muito ter reconduzido – tudo ou quase tudo – ao barro frágil em que fomos esculpidos.
É comum tentar fazer, pois, quando a idade chega, a síntese do que se estudou, do que se viajou, do que se conversou, do que se observou, do que se aprendeu enfim, incluindo o que se intuiu – para se ter uma chave, mesmo que provisória, do misterioso “tudo” que temos perante nós e sobretudo, por todas essas vias, dentro de nós.
TENTAR COMPREENDER
Olhando para o nosso passado, para a caminhada do homem desde o início até aos nossos dias, é inevitável procurar compreender-se, primeiramente, o sentido geral desse vaguear quase cego de milénios; e, depois, que tipo de testemunhos nos foram deixados; e como nos ajudam eles a responder às interrogações fundamentais:
O que estamos nós aqui a fazer há milhares de anos? Sobre que princípios fundamentais fomos organizando a nossa vida colectiva? De que ideias lançámos mão para construir cada presente, e como as propusemos ou impusemos a outros?
RETRATOS DE UM MUNDO DOENTE
E o que prevalece como luz orientadora dos nossos passos? A razão ou a… des-razão, à falta de outro termo? E se é a razão, como seremos orgulhosamente levados a sublinhar, mercê das conquistas extraordinárias da ciência e da técnica, quais os motivos reais por que temos o nosso planeta tão desorganizado, tão perigosamente sob múltiplas tensões, com recursos escassos tão mal distribuídos, e com um cada vez mais generalizado grau de desconfiança entre todos, que nos parece empurrar o globo terrestre para o abismo?
Desde as alterações climáticas à expansão dos arsenais militares, não são poucos os sintomas das muitas doenças do mundo.
É preciso um resumo bem condensado desses males? Quem o poderá fazer melhor do que António Guterres, que não tem feito outra coisa senão tocar nas feridas dos países e dos povos há pelo menos quinze anos, desde que assumiu a chefia do Alto Comissariado para os Refugiados?
A sua visão da situação do mundo e do papel da ONU, na perspectiva de um segundo mandato a que concorre como Secretário-Geral, tal visão, dizia, é uma ladainha de desgraças definidoras da actual desordem internacional, e a que o Secretário-Geral é chamado à tarefa impossível de encontrar a panaceia.
A VITÓRIA DO IRRACIONAL
Na sua apresentação da recandidatura, António Guterres traça um quadro sombrio de um mundo onde «mais e mais pessoas (…)são atraídas pela desinformação, populismo, extremismo, xenofobia e racismo». Uma espécie de «era pós-iluminismo», chamou-lhe o Secretário-Geral; «era que alimenta sistemas de crenças irracionais e até niilistas, espalhando o medo, negando a ciência e a verdade». E em que prevalece com cada vez maior nitidez «a nova divisão geoestratégica e relações de poder disfuncionais, tornando a cooperação internacional infinitamente mais difícil em um momento em que mais precisamos».
Em tom positivo, e mesmo mobilizador, todavia, Guterres enfatizou sua forte crença em nações trabalhando juntas para resolver as crises e conflitos mundiais. Mas disse que o multilateralismo «depende muito do estabelecimento de confiança entre os Estados-membros e de estabelecer relações funcionais entre as maiores potências».
«Se não houver confiança entre os Estados-membros e se a relação entre as maiores potências continuar disfuncional, então não há muito que o sistema multilateral possa fazer», afirmou. «Se essas duas coisas forem tratadas adequadamente, então acho que há uma chance de o multilateralismo ser mais eficaz», sublinhou.
E quanto aos princípios universais? A Carta das Nações Unidas, como documento fundador do sistema internacional, não precisa de ser modificada quanto a tais princípios. Estão lá todos os que garantem a paz, a segurança e o desenvolvimento. Assim queiramos todos.
Carlos Frota