A barca e o timoneiro
A barca da Igreja, as vagas tempestuosas do tempo presente, e o timoneiro solitário, tantas vezes de joelhos no seu aposento de Santa Marta, a pedir Luz e Energia e Fé para sossegar as ondas – e conduzir a barca a bom porto.
Francisco rezando sozinho, imagino eu, no seu quarto simples, modesto mesmo. Como Bento XVI ainda hoje, no seu retiro dos jardins do Vaticano. Ou João Paulo II, João Paulo I, João XXIII, Paulo V… essa cadeia ininterrupta de espíritos esclarecidos, mas frágeis e solitários perante a imensidão do desafio, na busca incessante do apoio de Deus.
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Nas grandes figuras da Igreja, há muita desaparecidas ou protagonistas de tempos mais recentes, sempre procurei ver, para além de cada homem e da sua circunstância, quer dizer, do seu tempo histórico, a grandeza das almas que se abriram à acção do Espírito, para não serem senão modestos escribas de Quem do Alto lhes ditava o caminho.
E ponho-me a rebuscar na memória os sucessivos Papas do Século XX, o século mais sanguinolento da História dos homens, para tentar compreender como agiram durante dois conflitos mundiais e entre-guerras, como estenderam a mão aos perseguidos, como inspiraram políticas de justiça social num Velho Continente duas vezes devastado pela sanha do nacionalismo/imperialismo exacerbado.
Com que ferocidade o mal se espalhou então pela Europa e pelo mundo. Já o esquecemos?
Sinceramente, ao analisar a vida internacional deste nosso tempo, e a conflitualidade exacerbada no interior de certos países, fico com a dolorosa impressão de que esquecemos tudo para trás.
E regresso à impressão dolorosa, sim, do dejá vu. De que a História se pode mesmo repetir.
Até aos confins da terra
Na realidade – histórica e actual – de uma vastíssima comunidade humana que não conhece fronteiras, a nossa Igreja – Católica, Apostólica, Romana – com os seus 1,3 mil milhões de fiéis, é uma força para o bem, num mundo que tanto precisa dele – do Bem.
O Bem que cura. O Bem que reabilita. O Bem que dignifica. O Bem que gera justiça e paz. E PAZ!
“Força”, disse eu? Sim, força não no sentido político, e muito menos militar do termo (“o meu reino não é deste mundo”, lembrou ao oficial romano o seu Divino Fundador), mas no sentido da mobilização de energias, para levar solidariedade, compreensão, escuta, ajuda material e moral, a quem mais delas precisa: católico ou não católico, cristão ou não cristão, crente ou não crente.
Na História, ainda por fazer, naturalmente, da terrível pandemia que nos continua a afligir, à escala planetária, muito será escrito (e muito mais fatalmente ignorado) sobre as múltiplas respostas das instituições católicas de solidariedade nacional e internacional, médicos e paramédicos católicos, voluntários católicos em todas as áreas de intervenção social como no amparo a doentes e idosos, etc. etc. etc. Para não falar dos que continuam a cair, na frente de combate do famigerado Covid-19.
No contexto pseudo-globalizante em que vivemos – onde as identidades são muitas vezes relativizadas e, à pressa, substituídas por uma falsa civilização universal (o consumismo global propõe-na, para esvaziar templos e encher supermercados) –, não deixa de constituir uma “âncora” consoladora sentirmo-nos espiritualmente próximos de gente que nunca veremos, vivendo em países e continentes onde nunca estaremos, mas unidos a nós (e nós a eles!) pelo mesmo entendimento básico do mundo e da vida. Pelas mesmas exigências de igualdade e de repúdio da desigualdade evitável e insultuosa. E pelo mesmo anseio de infinito, no fim da caminhada. Quer dizer, pela mesma busca do essencial, abandonando o acessório – e assim sendo, todos co-obreiros dum mundo melhor. É a nossa esperança!
Retendo ainda na memória imagens da visita do Santo Padre ao Iraque, frequentemente me interroguei, à medida em que se iam cumprindo as diversas etapas do programa. E dizia-me sem cessar: como toda esta gente que assiste à missa, celebrada pelo Papa, podia ser da minha família! Porque… porque…
…porque são mesmo da minha família! Do mesmo que outros que nunca irão à missa, por rezarem de modo diferente ao mesmo Deus, são pois também eles da minha família! São primos afastados? Não, são irmãos como os outros!
Já tinha estado no Iraque, há muitos anos. Agora fui e continuo um pouco lá, emaranhado na teia de afectos que o nosso timoneiro sabe revelar!
A barca e o timoneiro
Ao leme do grande barco desde 2013, quantas vezes não terá passado pela cabeça do nosso timoneiro, o Santo Padre, tentar acordar Jesus para que Ele, com uma só ordem, amaine o vento e restabeleça a calma, no nosso vasto Mar de Tiberíades!
As sementes da divisão são muitas, no interior da barca, porque alguns se acham predestinados para, sendo mais esclarecidos que o piloto, substituir pelas suas bússolas pessoais (feitas de orgulho e de auto-suficiência intelectual, o que é a mesma coisa…) a bússola do sucessor de Pedro.
Se a tendência cismática foi uma constante na História do Cristianismo – e aí temos as diversas denominações protestantes a atestá-lo –, a quase-cismática também o foi, com formas larvares de separatismo ou dissidência que de um ou outro modo continuam a ser sementes de divisão, perante os múltiplos desafios do mundo exterior.
Jorge Mario Bergoglio dizia, há dias, mais ou menos o seguinte: reformas sem oração não constituem prática de uma Igreja que apela continuamente à iluminação do Alto. Estará o Papa a dizer o óbvio ou qualquer coisa de extraordinários que os destinatários do seu “recado” não entendam?
Só posso acrescentar o que a experiência pessoal me dita, e dita no fundo a qualquer cristão: só a oração pode matar a presunção e o orgulho, argamassa com que tantos constroem estátuas a si próprios, que o tempo acaba por reduzir a pó.
Poderia citar aqui alguns nomes sonantes da Igreja universal que, mais papistas que o Papa (é caso para dizer), só não movem o Vaticano para os seus próprios países porque a basílica de São Pedro é pesada demais, no peso das suas pedras e, mais importante ainda, no da sua tradição.
Uma catequese contínua
A das quartas-feiras, a da chamada Audiência Geral, antes na Sala Paulo V mas agora, pandemia oblige, a partir da biblioteca pontifícia, não longe dos aposentos que Jorge Mario Bergoglio nunca usou, para não ficar isolado, mas estar mais perto de todos.
E via Internet ouve-se e vê-se Francisco falar, qual pároco de aldeia, à sua aldeia do tamanho do mundo.
É preciso ouvi-lo. É preciso reflectir no que ele diz. Perceber como ele lê o tempo, o nosso tempo.
É preciso cobrirmo-nos dos muitos frios da vida com o agasalho da sua palavra, imitada da do Divino Mestre!
Quando alguém do outro lado do Atlântico disse que ele era um ignorante em economia, por criticar o liberalismo puro e duro, que só conhece a lógica do lucro e desconhece o rosto dos pobres, eu intimamente felicitei-o por essa sua “santa ignorância”. Que não é ignorância nenhuma, mas apenas uma visão diferente através de óculos diferentes, para ver ao perto a miséria dos desesperados – óculos “comprados” na melhor casa de óptica que existe, como morada simples: lá em cima….
Carlos Frota