Nem coche nem carruagem
Mas de Land Rover…
Não sei se a mais alguém ocorreria ir para a eternidade de Land Rover. Imaginávamos cavalos brancos, ou mesmo um último passeio fluvial, no tão simbólico Tamisa, para esse oficial de Marinha que poderia ter sido almirante. Mas não. Filipe escolheu o Land Rover, o jeep que ele próprio desenhou, transformado em improvável carro funerário, preparado para não sei que desertos (ou campos de batalha!) do Além!
Mas esta originalidade exprime afinal, em grande parte, a personalidade da figura agora desaparecida. Foi secundária, e nunca ninguém dirá em que medida não foi tantas vezes essencial, nessas parcerias de sentimento e razão que são os casamentos das figuras públicas.
E palmilhando por onde o determinavam os passos da sua Soberana, manteve-se insubmisso até ao fim, ou pelo menos assim parecia…
Num elogio sentido, o Arcebispo de cantuária referia-se ao falecido Duque como um cristão exemplar, pela complexa teia de associações e iniciativas que animou em prol da comunidade. Não será isto bastante para julgar uma vida, segundo o nosso critério humano?
DA MORTE, DA VIDA E DO RESTO
Esta é uma tentativa de reflexão sobre os faustos da vida (para alguns) e a profunda igualdade perante a morte, sem excepções. Não visa o meu texto, pois, ofender nem incensar o país em causa, nem aqueles a quem a História reservou um papel dirigente, através dos séculos – papel hoje reduzido à função quase cerimonial que se conhece.
Gosto de pensar na vida como nos velhos teatros, onde nos roupeiros se foram acumulando os trajos de todos os géneros, para os diferentes actores usarem, em momentos pré-determinados. Só que desses momentos, os decisivos não são os actores que os definem.
O autor da grande peça da vida é Deus. Ele comanda o nascimento e a morte. Entre os dois momentos, é dado a cada um de nós fazer o que muito bem (ou muito mal) entende.
O enredo da peça é sempre o mesmo. A nossa preciosa e sempre fugidia LIBERDADE. E, para usufruir desta, cada um tem ao seu dispor o que é e no que o tornaram. O que foi inculcado pela impressão digital original que marcou, e o conjunto de circunstâncias supervenientes que condicionaram, por vezes de forma decisiva, o retrato final.
Mas andar de carruagem, ter castelos e títulos, transformará os homens em super-homens, as pessoas em super-pessoas? Estou profundamente convencido que não. Por isso me pareceu sempre tão fortemente simbólica a história de “o rei vai nu!”… Ainda bem que Deus não põe vendas nos olhos das crianças! São elas afinal as únicas a denunciar o óbvio!
CARRUAGENS, CASTELOS E TÍTULOS
Estereótipos de um país que se quer especial, como se todos não o fossem, só por neles habitarem Pessoas. Os luxos da Corte. A soberana de carruagem dourada, numa pose de quem desafia o tempo. E o tempo a rir-se silencioso, como se não fosse ele a dar tempo… ao tempo!
O círculo fechado de uma família que não se abre ao mundo, numa cuidadosa prática da endogamia. Que não se abre quase nunca; e, se se abre, é sempre com sabor a transgressão, como se os Antepassados Ilustres exigissem de Além-Túmulo o regresso imediato à suposta pureza original: …não terá o filho deles a pele demasiado escura?
E do outro lado da paisagem humana, gente simples e boa, que se mobiliza para causas autenticamente humanitárias. Filipe soube ir ao seu encontro. Quem? Philippos Andreou (Philip Andrew) of Schleswig-Holstein-Sonderberg-Glücksburg, Príncipe da Grécia e da Dinamarca, o recém falecido Duque de Edimburgo, será lembrado por ter sido um homem de muitas causas humanitárias, que serviram para dar oportunidades de valorização a muitos jovens, numa sociedade afinal muito desigual.
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A morte, há uma semana, do marido de Isabel II de Inglaterra, para além da natural emoção dos seus mais próximos, não chocou quase ninguém, dada a sua avançada idade e a decisão preparatória da partida definitiva, há três anos, quando decidiu retirar-se da vida pública.
Sem ser indelicado ou desrespeitador, posso pois dizer que o impacto do seu desaparecimento físico é quase irrelevante, se atendermos apenas aos aspectos institucional e mediático. A Monarquia prosseguirá, sem qualquer perturbação, como é óbvio.
No plano mais pessoal, a sua era há muito havia cessado com o desaparecimento dos seus amigos. Os que, da sua geração, foram os protagonistas principais ou não de um período de ouro, o do jovem adulto, antes e sobretudo depois de se submeter ao papel ingrato, mas voluntária e dedicadamente assumido, de marido da soberana, seu apoio constante durante sete décadas e meia ou quase.
Sendo eu um ano ou dois mais velho do que Carlos, o primeiro filho de Isabel e Filipe, foi sob os óculos das suas peripécias como família e como instituição política de um país muito (e depois crescentemente menos) relevante que vi, como milhões, o filme do meu próprio tempo, nas suas modas, nas suas crises, nos seus triunfos e insucessos.
Eles, os “royals”, assim o quiseram. Vivendo da exposição mediática permanente – de que todos se queixam, de que alguns foram vítimas, mas de que nunca prescindiram – quiseram ser modelo e exemplo, não só para a sua ilha, mas para o mundo, sem o conseguirem completamente em nenhum desses dois desideratos. Nem no ser modelo, nem no ser exemplo. Foram só confrangedoramente… humanos.
E assim presenciámos, sob as roupagens do luxo, no interior de castelos das mil e uma noites, e na vida dourada de multimilionários sem profissão aparente, a mesma nudez dos heróis que também são cobardes, dos cobardes que também são heróis, da perfídia onde de repente se descobre virtude e o seu contrário – enfim, todo o mostruário das grandezas e misérias do Ser Humano.
É por isso que a figura do Duque de Edimburgo se presta admiravelmente – pelo lado humano, pela sua fidelidade a causas e pelas razões opostas às que a sua família certamente desejava – aos objectivos desta crónica.
Quais? A minha tese é simples… e, como diria o outro, não é original e não é minha: – não há outra forma de superar as deficiências da alma humana, não há camuflagem cem por cento eficaz do preconceito ou arrogância de classe, que não o seja através da prática com verdade dos princípios que se proclamam. Quais? A adesão a uma ética de verdade. A prática sincera do que ensina a religião. A proximidade autêntica com quem tem infinitamente menos. E de quem vale muitíssimo pouco ou nada, segundo critérios puramente sociais, mas tão igual a todos, no nascimento e na morte!
OS MESMOS DESAFIOS… SEMPRE!
A morte do Duque de Edimburgo constitui naturalmente a perda de uma referência especial para a sua família, mas é talvez mais que isso. É o quase final de uma geração de compromissos para toda uma vida.
Esteja como estiver a Igreja Anglicana, no plano da sua gestão dos desafios que enfrentam todas as igrejas no Ocidente, a nova geração reinante no Reino Unido é já ela protagonista de alterações de comportamento que prenunciavam novas direcções da sociedade.
O ferro do “antes quebrar que torcer” terá hoje resistência mais fraca?
Carlos Frota