Os Mórmons – VIII
Em 1890, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias renunciou publicamente à poligamia. Mas se a sociedade passou a aceitar melhor os Mórmons, muitos entre estes não concordaram com a renúncia. Justificavam a sua não aceitação com o facto da renúncia, mesmo que na forma de um manifesto da liderança mórmon, não provinha de uma revelação, logo carecia de valor doutrinal.
Mas o fim oficial da poligamia não afectaria os Mórmons. Todavia, em 1904, a liderança da igreja ameaçou os polígamos com a excomunhão, passando até, posteriormente, a cooperar com as autoridades federais para os processar e condenar. A Igreja Mórmon não mais parou de crescer, atingindo em 1953 mais de um milhão de membros. Mas o tema da poligamia estava para durar…
Em 1913 fundou-se uma pequena cidade rural no Arizona, Short Creek Community. Na década de 1930, ali se estabeleceram fundamentalistas mórmons (defendem a poligamia, por exemplo), que permanecem até hoje. Cinco anos depois, em Maio de 1935, membros do Council of Friends (“Conselho de Amigos”, um grupo separatista da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias), provenientes de Salt Lake City, instalou-se em Short Creek com o propósito expresso de construir “um ramo do Reino de Deus”, fundindo as duas sensibilidades mórmons. O líder fundamentalista John Barlow acreditava que a comunidade isolada poderia tornar-se num lugar de refúgio para aqueles que se mantinham na prática secreta da poligamia, considerada um crime e abandonada publicamente pelos Mórmons desde 1890.
TEMPOS MODERNOS
Mas a 26 de Julho de 1953, o governador do Arizona, John Howard Pyle, enviou tropas federais à localidade para impedir a poligamia, no que ficou conhecido como “Ataque de Short Creek”. Depois, iniciou-se uma batalha legal, durante dois anos, que se revelou um desastre de relações públicas para o Governo Federal e que prejudicou a carreira política de Pyle. Além disso, Short Creek ganhou simpatia na opinião pública, pela má conduta política, atabalhoada, por parte do governador e do Governo Federal, que prefeririam, durante quase cinquenta anos, não mexer nem ouvir falar daquela comunidade. A poligamia ganhou até alguma simpatia entre os Mórmons em geral. Já a Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias aproveitou os acontecimentos para se desenvolver naquela região; mudou o nome de Short Creek para Colorado City e Hildale, de forma a eliminar qualquer ligação com os ataques ali perpetrados. Entretanto, a sede da Igreja Mórmon, a “oficial”, parou de apoiar o Governo na identificação e processos em relação aos praticantes de poligamia.
Outro ramo mórmon, entretanto, a Igreja Reorganizada de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, mudou a sua denominação para “Comunidade de Cristo”, em 2001. Já agora, na actualidade a Igreja Mórmon (oficial) contava, em 2019, com mais de 16,5 milhões de fiéis em todo o mundo, em todos os continentes, 52 mil missionários e 31 mil congregações. Há mais mórmons fora dos Estados Unidos do que no país onde se fundou, curiosamente. A Comunidade de Cristo tem mais de 150 mil membros e existem vários grupos cismáticos que continuam denominar-se como Santos dos Últimos Dias Reorganizados, que provavelmente têm mais de cem mil membros. Além destes, existe uma variedade de grupos fundamentalistas mórmons, os quais continuam a praticar a poligamia. O número estimado de fundamentalistas oscila entre trinta mil e sessenta mil.
A denominação maioritária, a mais numerosa e seguidora de Young & Smith, é um colosso na actualidade. Não apenas do ponto de vista religioso, mas também como porta-estandarte de defesa pública e vigorosa da família nuclear (na acepção tradicional, não a polígama…), além de fortemente activa e com um papel proeminente em questões políticas, como se revelou na oposição às bases de mísseis MX Peacekeeper em Utah e no Nevada, na defesa da Emenda de Igualdade de Direitos, na questão de legalização de jogos de azar, em relação ao casamento de indivíduos do mesmo sexo, ou em relação à morte medicamente assistida. A sua posição política só se evidencia em questões morais, mantendo uma posição de neutralidade política noutros temas. Não deixam, todavia, de incentivar os seus membros a serem politicamente activos, a participar nas eleições e a ter conhecimento sobre as questões políticas e sociais actuais nas suas comunidades, Estados e países, além de permitir e estimular a candidatura a cargos políticos, como aconteceu já com o putativo candidato republicano às Presidenciais nos Estados Unidos, Mitt Romney, membro da Igreja Mórmon.
Por outro lado, algumas mudanças têm sido produzidas no seio dos Mórmons, mesmo a título oficial. A organização tem vindo a tentar adaptar-se às exigências e imperativos da vida moderna. Por exemplo, acompanhou a evolução nos direitos cívicos nos Estados Unidos, integrando afro-americanos entre os seus membros e em 1978 iniciando a ordenação sacerdotal de homens dessa comunidade, que reverteu uma política originalmente instituída por Brigham Young em 1852.
Também ocorrem mudanças periódicas na estrutura e organização da Igreja, principalmente por forma a acomodar o crescimento da organização e o aumento da sua presença internacional. Por exemplo, logo no início do Século XX, os Mórmons instituíram um “Programa de Correlação do Sacerdócio” (“Priesthood Correlation Program”) para centralizar as operações da Igreja e constituir uma hierarquia de líderes do sacerdócio, o que demonstra uma atenção muito importante no aspecto organizativo e administrativo, fortemente vinculado ao escopo missionário. Durante a Grande Depressão, mais tarde, nos anos 30, os Mórmons criaram uma espécie de Welfare State, ou seja, uma rede de assistência e sistema de bem-estar para os mais desfavorecidos da Igreja, além de promover a cooperação humanitária com outras organizações religiosas de outras confissões, como o Catholic Relief Services e o Islamic Relief, além de organizações seculares como a Cruz Vermelha Americana. Em jeito curiosidade, o Catholic Relief Services esteve muito activo em Macau durante a crise dos refugiados do Vietname, nos anos 60.
Não faltaram também desafios à sua doutrina e autoridade, além de exigência de resposta a mudanças na sociedade, como a secularização no mundo ocidental. Por outro lado, surgiram desafios quanto à correção da tradução do “Livro de Abraão” (compilação de Smith, 1835-1842, de escritos atribuídos a Abraão) e acusação de existirem outros documentos primários forjados, o que tem posto em causa aspectos importantes da história oficial da Igreja primitiva. Os debates mantêm-se também em torno das mulheres e o seu papel na organização, tal como os homossexuais, além dos Negros e da questão do evolucionismo versuscriacionismo.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa