Memória, não amnésia!
É preciso dizer no nosso coração: nunca mais! Estas palavras do Papa ecoaram na sua mensagem de celebração do Dia da Memória do Holocausto (quer dizer, do extermínio de seis milhões de judeus nos campos de concentração nazis) do ano passado, quando Francisco pediu a todos que marcassem o dia com um momento de oração e recolhimento, «dizendo em nossos corações, “Nunca mais!”».
O Papa apelou então para a lembrança constante do Holocausto, afirmando: «Em face desta imensa tragédia, a indiferença não é admissível e a memória é devida».
Lembramos neste contexto a sua visita ao Memorial e Museu Auschwitz-Birkenau, no local do infame campo de extermínio nazi, durante a visita à Polónia em 2016. Francisco tornou-se o terceiro Papa a visitar o local, após João Paulo II e Bento XVI.
AS VOZES DA ONU E DA IGREJA
Duas instâncias de audiência mundial, este ano, ergueram há dias a voz para exprimirem a inquietação de todos. Refiro-me à Organização das Nações Unidas e à Igreja Católica, através dos seus líderes máximos.
De novo no Dia da Memória do Holocausto, o Papa salientou que a lembrança é uma expressão da humanidade, é um sinal de civilização. «A lembrança é condição para um futuro melhor de paz e fraternidade», disse.
E alertou: «Lembrar também significa ter cuidado, porque essas coisas podem acontecer de novo, começando com propostas ideológicas destinadas a salvar um povo e terminando por destruir um povo e a humanidade». Devemos estar atentos «para saber como começa este caminho de morte, de extermínio e de brutalidade».
NAS NAÇÕES UNIDAS
Entretanto, o Secretário Geral da ONU, António Guterres, pediu uma acção internacional decisiva e coordenada, uma aliança global «para combater a propaganda e a desinformação». E pediu uma maior educação sobre as acções nazis durante a Segunda Guerra Mundial, enfatizando que quase dois terços dos jovens americanos não sabem que seis milhões de judeus foram mortos durante o Holocausto.
António Guterres falou na Sinagoga Park East e no Serviço Internacional de Lembrança do Holocausto das Nações Unidas, assinalando assim o 76.º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, realizado através de meios virtuais, este ano por causa do Covid-19.
O EFEITO DA PANDEMIA
O Secretário Geral referiu que a pandemia «exacerbou injustiças e divisões de longa data», acrescentando que «a propaganda, ligando os judeus à pandemia, por exemplo, acusando-os de criar o vírus como parte de uma tentativa de dominação global, seria ridícula, se não fosse tão perigosa». Segundo ele, «esta é apenas a mais recente manifestação do recrudescer do sentimento anti-semita que remonta pelo menos ao Século XIV, quando os judeus foram acusados de espalhar a peste bubónica».
Guterres reconheceu ser triste, mas não surpreendente, que a pandemia tenha desencadeado outra erupção de negação do Holocausto, distorção e minimização da história: «Na Europa, nos Estados Unidos e em outros lugares, os supremacistas brancos estão a organizar-se e a recrutar além fronteiras, exibindo símbolos e fardas nazis e a sua ambição assassina. (…)Tragicamente, após décadas nas sombras, os neonazis e as suas ideias estão a ganhar popularidade».
Guterres salientou que as autoridades dos Estados Unidos alertaram que os neonazis estão a aumentar em todo o País e em todo o mundo. Em alguns países não identificados, explicou, os neonazis infiltraram-se na polícia e nos serviços de segurança do Estado e as suas ideias podem ser ouvidas nos debates dos principais partidos políticos.
«O aumento contínuo da supremacia branca e da ideologia neonazi deve ser visto no contexto de um ataque global à verdade que reduziu o papel da ciência e da análise baseada em factos na vida pública», apontou.
A FRAGMENTAÇÃO DOS MEDIA
Guterres constatou que a fragmentação dos media tradicionais e o crescimento das plataformas sociais estão a contribuir para a ausência de factos verificáveis e só nessa base compartilhados. «Precisamos de uma acção global coordenada, na escala da ameaça que enfrentamos, para construir uma aliança contra o crescimento e disseminação do neonazismo e da supremacia branca, e para combater a propaganda e a desinformação», alertou.
O rabino Arthur Schneier, sobrevivente do Holocausto, advertiu que «se não levarmos a sério as trágicas lições da história, elas estão condenadas a repetir-se». «Este princípio orientador – memória, não amnésia – é um imperativo moral para conter o aumento do ódio, que é maior hoje do que em qualquer momento desde o fim da Segunda Guerra Mundial».
Schneier frisou que as suásticas nazis estão novamente a desfigurar sinagogas e cemitérios em França, na Alemanha e, mais recentemente, até em Montreal, no Canadá. Entre aqueles que invadiram o Capitólio dos Estados Unidos, a 6 de Janeiro, muitos vestiam camisas com as inscrições “Camp Auschwitz” e “6MWE” (abreviação de Six Million Weren’t Enough).
«As crianças não nascem com ódio; elas são ensinadas a odiar», acentuou o rabino de 90 anos. «A educação sobre o Holocausto nas escolas é uma obrigação».
UMA EUROPA EM EBULIÇÃO?
Entre o alarmismo e a cegueira ou a ingenuidade, vai uma grande distância! Os media citam exemplos concretos desta ebulição na Europa.
Redes de armas neonazis espalham-se pelo Velho Continente. Nas semanas anteriores e desde a tentativa de golpe de Donald Trump, a 6 de Janeiro em Washington, os círculos neonazis estavam a traficar grandes quantidades de armas na Europa. Os “stocks” de armas apreendidos pela polícia dão uma ideia da intensa actividade paramilitar das forças de Extrema-Direita em todo o continente. Alguns estão directamente ligados a altos funcionários em funções.
A 13 de Janeiro, por exemplo, a Brigada de Repressão contra a Delinquência, da Polícia de Paris, realizou uma das maiores apreensões de armas já feitas em França. O caso envolveu militares em serviço e aposentados. Acredita-se que tenham fornecido armas a grupos fascistas ou neonazis. Uma quantidade de armas descrita como “fora do comum” foi apreendida na busca.
De acordo com o jornal diário Le Figaro, as investigações balísticas serão utilizadas para determinar se as armas foram utilizadas no acerto de contas vinculado ao tráfico de drogas. O mesmo jornal acrescentou: “a rede é suspeita de ter fornecido armas para traficantes de drogas, mas também para simpatizantes da Extrema-Direita, indicaram fontes próximas ao caso”.
E as notícias do mesmo teor prosseguem: “…a Polícia Judiciária de Paris prendeu dez pessoas na região de Ile-de-France ao redor da cidade e no Leste e no Sul de França, incluindo dois soldados, um actualmente empregado pelo Ministério da Defesa…”; “…também foram presos três soldados aposentados, que haviam trabalhado no sector privado, incluindo um oficial de alta patente e um ex-oficial de segurança…”; “…apreensões de armas ‘não padronizadas’ deste tipo, envolvendo círculos neonazistas, estão a expandir-se por toda a Europa…”.
Preocupante, não!?
CONCLUINDO…
Não posso terminar melhor este texto senão repetindo o alerta do Papa: «Lembrar significa ter cuidado, porque tudo pode acontecer novamente, começando com propostas ideológicas destinadas a salvar um povo e terminando por destruir um povo e a humanidade».
O Santo Padre considera que devemos estar atentos «para saber como começa este caminho de morte, de extermínio e de brutalidade».
Nos caminhos tortuosos da História, terminaria eu, como é estranho o fascínio do homem para regressar regularmente aos subterrâneos do mal absoluto!
Carlos Frota