Na serenidade improvável dos dias

VATICANO E O MUNDO

Na serenidade improvável dos dias

O tempo passa tão depressa que, quase sem darmos por isso, aproximamo-nos do fim de um ano que marcará indelevelmente a história do planeta, a história dos países sem excepção – e a vida de cada um de nós, individual e colectivamente. A pandemia está a deixar marcas em tudo o que a Humanidade foi construindo desde há séculos, comprometendo para sempre não eventualmente as criações materiais (que podem ser reconstruídas ou readaptadas), mas algo de mais essencial: o sentimento de invencibilidade do próprio Homem.

O optimismo ingénuo do “nós podemos tudo!…” tem de ser hoje atenuado pela ideia condicionante “…se a Natureza o deixar!”. Claro que, como em todos os pós-guerra, o impulso de rebeldia (saudável!) é de tudo recomeçar. Mas não a partir do zero, receia-se. E por isso se fala já – sem que esta esteja debelada – de se estar melhor preparado para a próxima pandemia.

E é a partir daqui que gostaria de partilhar algumas reflexões, a meio termo entre o religioso e o filosófico, o social e quiçá o político, terrenos contíguos em que os não-especialistas como eu, em qualquer das disciplinas, alicerçam apesar de tudo as suas opções fundamentais de vida.

O fim dos tempos?

Revisito, como milhares de cristãos, nestes dias de incerteza, os enigmáticos textos bíblicos sobre o fim dos tempos. E nutro por eles a mesma estupefacção que sinto pelo extraordinário que é para mim o início de tudo, o Génesis, que não leio literalmente mas que nem por isso me liberta, num milímetro que seja, do sentido do maravilhoso.

Vou parecer muito reaccionário com o que vou escrever a seguir, mas faço-o sem temor de parecer mal. Como a ironia faz parte do meu “kit” de sobrevivência, direi aqui, com total impunidade e com o certificado anexo de pavorosa ignorância, que a história do “Big Bang” sempre me pareceu um episódio de fogo de artifício e de panchões à mistura, em festa de Ano Novo Chinês!

Mas um cada vez mais numeroso acervo de testemunhos, entre leigos iluminados, pessoas promovendo agendas obscuras, sacerdotes bem preparados, e muita outra gente assim assim, fala, escreve, edita vídeos no YouTube, cria blogues, sobre o fim dos tempos. Com que cuidado se tem de navegar por entre os escolhos de tanta pseudo-erudição!

O Covid-19 seria assim o “aviso sério” do que está para vir. Como me reconheci acima mau leitor do Apocalipse, que autoridade tenho para contraditar tal antevisão? Nenhuma!

O que fazer então perante um mundo ainda mais carregado de incertezas? Duas tarefas. Arrumar duas casas. Aquela em que habitamos com todos os outros, o Planeta. E aquela de que somos o ocupante único, dentro de nós.

A resposta do Papa Francisco

Resignado, o nosso querido Papa Francisco, perante a proximidade do fim dos tempos? Busco nele inspiração, neste Pontífice que tanto admiro.

Na ONU, a resposta foi clara: repensar o futuro da nossa casa comum. Francisco pediu reformas, cooperação, respeito pela dignidade humana, na sua mensagem digital para a 75ª Sessão da Assembleia Geral.

Aí o Sumo Pontífice apelou a um compromisso para um futuro melhor, através da colaboração entre todos os Estados. Sublinhou que este 75º aniversário é uma ocasião adequada para expressar o desejo da Santa Sé de que a organização sirva efectivamente «como sinal de unidade entre os Estados e um instrumento de serviço a toda a família humana».

Enquanto o mundo continua a enfrentar os desafios decorrentes da pandemia, Francisco destacou que a crise expôs a fragilidade humana e questionou os nossos sistemas económicos, de saúde e sociais. Enfatizando o direito de todas as pessoas aos cuidados básicos de saúde.

O Papa disse que a pandemia nos interpela a fim de que aproveitemos este momento de provação para «escolher entre o que importa e o que é transitório» e «separar o que é necessário do que não é», devendo levar à consolidação do multilateralismo, responsabilidade global, paz e inclusão dos pobres.

Laços fundamentais

A crise actual mostra-nos que a solidariedade não pode ser «uma palavra ou promessa vazia». Também nos mostra «a importância de evitar toda tentação de ultrapassar nossos limites naturais». A este respeito, o Papa considera o efeito da pandemia no mercado de trabalho impulsionado por uma crescente robotização e inteligência artificial (IA), e sublinhou a necessidade de «novas formas de trabalho que sejam verdadeiramente capazes de satisfazer o potencial humano e afirmar a nossa dignidade».

Para garantir isso, o Papa propõe «uma mudança de direcção» que envolve uma estrutura ética mais robusta, capaz de superar «a cultura de desperdício generalizada e silenciosamente crescente de hoje». O Santo Padre pediu uma mudança no paradigma económico dominante, que visa apenas expandir o lucro. Ao mesmo tempo, instou as empresas a fazerem da oferta de empregos a mais pessoas um de seus principais objectivos.

Produzir o supérfluo?

O Papa Francisco assinala que na origem da nossa cultura do desperdício existe uma «grosseira falta de respeito pela dignidade humana, a promoção de ideologias com compreensões redutivas da pessoa humana, uma negação da universalidade dos direitos humanos fundamentais e um desejo para poder e controlo absolutos» Tal, afirma, «um ataque contra a própria Humanidade».

O Papa lamenta as muitas violações dos direitos humanos fundamentais que «nos oferecem um quadro assustador de uma humanidade abusada, ferida, privada de dignidade, liberdade e esperança para o futuro». O Papa caracteriza como «intoleráveis, mas intencionalmente ignorados por muitos», os casos de perseguição religiosa, crises humanitárias, o uso de armas de destruição em massa, deslocamento interno, tráfico de pessoas e trabalhos forçados, e o «grande número de pessoas forçadas a sair de casa».

Respostas visando o homem

Francisco recomenda um modelo económico que «incentive a subsidiariedade, apoie o desenvolvimento económico local e invista em educação e infraestrutura, em benefício das comunidades locais».

Também exorta a comunidade internacional a acabar com as injustiças económicas por meio de maior responsabilidade fiscal entre as nações e «uma promoção eficaz dos mais pobres», incluindo a oferta de assistência às nações mais pobres e altamente endividadas.

E as crianças? O Papa destaca os efeitos devastadores da crise Covid-19 sobre as crianças, incluindo migrantes desacompanhados e refugiados, apontando que os casos de abuso infantil e violência aumentaram. Num apelo às autoridades civis, o Papa Francisco exorta-as a estar «especialmente atentas às crianças a quem são negados os seus direitos fundamentais e dignidade, em particular o seu direito à vida e à escola».

O Papa Francisco falou da «necessidade de romper com o actual clima de desconfiança» marcado pela erosão do multilateralismo e pelo desenvolvimento de novas formas de tecnologia militar que alteram irreversivelmente a natureza da guerra. Em particular, destaca a dissuasão nuclear que «cria um “ethos” de medo baseado na ameaça de aniquilação mútua» e pede o desmantelamento da lógica perversa que vincula a segurança à posse de armamento enquanto gera lucro para a indústria de armas. Nesta frente, apela a um maior apoio aos principais instrumentos internacionais e jurídicos sobre desarmamento, não proliferação e proibição nuclear.

Sociedade pós-pandemia

«Nunca saímos de uma crise como estávamos. Saímos melhor ou pior», afirmou o Papa Francisco. Como queremos sair desta?, podemos perguntar.

Carlos Frota

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