Encontrar Deus na livraria…
Desde que, ainda novo, me comecei a interessar por livros que passei a considerar como “segunda casa” a livraria mais próxima. E posso usar generosamente o plural porque, saltitando de lugar para lugar toda a minha vida, fui sucessivamente elegendo o meu poiso – alternativo ao meu preferido canto doméstico – em cada estante, em cada prateleira de livraria, ao sabor das diferentes geografias do meu muito caminhar.
E de tal modo habituei os outros a verem-me nesses meus lugares predilectos que, de regresso a Bordéus depois mais de década e meia de ausência, para curta visita, o proprietário da Librairie Mollat vem cumprimentar-me ao meu canto favorito, o das Ciências Sociais. E como se eu nunca tivesse saído de lá, nesses mais de dez anos, só me disse: «– Ora aí está!».
Acreditem que tal constituiu para mim a melhor medalha de fidelidade a não sei que causa, se à dos guardiões de um templo devotado à Cultura, se à dos insaciáveis-leitores-que-não-compram-mais-porque-não-podem!
Tenho dito e escrito muitas vezes que a leitura foi para mim – e continua a ser! – a mais extraordinária forma de viajar. Nem o cinema, nem depois a televisão ou mesmo a Internet (com toda a mobilidade que esta proporciona) ultrapassaram a magia da leitura e do livro.
Que belíssimas “Viagens na minha terra”, como lhes chamaria certamente o Senhor Visconde de Almeida Garrett, essas paragens gostosas nas livrarias dos meus muitos bairros! A propósito: lembram-se os meus leitores de que modo inicia o autor o seu simpático livrinho? Fui-me recordar também:
“De como o auctor d’este erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens.”
Tirando a pretensão de me imortalizar (os cemitérios estão cheios de imortais) também eu gostaria de começar assim uma história.
A MINHA ALDEIA DOS LIVROS
Se o mundo se tornou numa pequena aldeia global, em cada bairro por onde andei construí uma segunda casa… um segundo poiso, nas “minhas” livrarias.
(Bem sabemos que, na vida, muito do que não nos pertence… pertence-nos também, de outra maneira, não de uma forma que o Direito protege, mas que o ser-se simplesmente humano dá sentido).
E a memória desfila célere, galgando o tempo e os lugares: a Livrarias Magalhães e Okápi em Benguela, Angola, antes da independência. A Livraria Lello em Luanda, ainda no mesmo período. A Livraria Almedina em Coimbra. E em Lisboa a Livraria Bertrand, no Campo Grande, perto da Faculdade de Direito. E a Livraria Barata, na Avenida de Roma. Anos depois a Livraria Cristal, em Bragança. A Livraria do Povo em Bissau. A Librairie Mollat em Bordéus. A Livraria Kiobo em Seul. E a Periplus em Jacarta.
E claro, a Livraria Portuguesa, em Macau!
Todas essas livrarias visito frequentemente na memória. Em todas revejo rostos conhecidos, pois todas as livrarias “dos meus bairros” constituíram locais de convívio, onde conheci pessoas, com quem conversei, a propósito de livros ou não.
E por via desses encontros, balões de oxigénio ou momentos de luz, mesmo fugaz, ocorriam na (por vezes) bem pesada monotonia dos dias. É que, muitas vezes, uma conversa inteligente e amena pode iluminar um dia, uma semana inteira! E um bom livro, idem idem aspas aspas, por maioria de razão. Quer dizer, se a conversa é devorada pelo tempo, com o livro pode sempre repetir-se esse milagre!
A LIVRARIA DE MR. BEZOS
Neste meu outono da vida, os mais novos têm-me ensinado que o mundo deixou de ser real e passou a ser virtual. Quer dizer: as coisas deixaram de ter materialidade imediata e, antes de chegarem a nós, passam pelo crivo do computador. Este passou a ser a janela do nosso quarto, aberta sobre o mundo.
Independentemente da hora, posso agora ir à livraria quando quiser, sempre que quiser. Um novo vizinho abriu uma livraria no meu bairro e, ao que me disseram – e para meu grande espanto! – isso mesmo vem acontecendo em quase todos os bairros do mundo. O mesmo senhor abriu uma livraria (que agora também vende tudo o resto ou quase, de sapatos a máquinas de barbear, passando por comida para cachorro) em cada bairro da nossa aldeia global!
Tenho lá ido com frequência porque, nesta já proveta idade, ainda tenho a pretensão de querer compreender o mundo. E por isso tento ler o mais possível sobre as razões dos outros, ao defenderem valores diferentes dos meus, práticas políticas, comportamentos individuais e colectivos e tudo o que vai formatando uma sociedade na qual já quase (quase…) não me vai apetecendo viver…
Ali se encontram dezenas e dezenas de livros sobre a actualidade social e política nos Estados Unidos. Tal tema amplíssimo constitui, agora em particular, um curso acelerado em universidade aberta, onde se observam, em tempo real, as dinâmicas essenciais estudadas na sociologia e na política: desde logo a estrutura do discurso presidencial maniqueísta, provocando o racismo e suas erupções; e a agitação manipulada de grupos extremistas de cor contrária.
OS LIVROS DESTE PRESENTE
Quando comparado este texto com outros, meus, escritos noutro jornal da imprensa local, subtrai-me completamente, à obsessão política que a actualidade mais imediata impõe, a campanha eleitoral americana, para partilhar com os meus leitores algumas reflexões/evocações sobre essa terra imaginária onde desde muito pequeno deitei raízes e a que chamo a minha “pátria das letras”.
Mas o momento americano impõe-se. E assim chego à realidade deste AGORA que se sobrepõe a tudo ou a quase tudo.
Na livraria do vizinho Bezos há de tudo com que equiparmo-nos contra a falta de informação do momento. E entre dois “clicks” de teclado do computador temos diante de nós livros virtuais que exaltam os candidatos ou vilipendiam os candidatos, ou mesmo tentam analisá-los com serena objectividade, tendo o actual Presidente, pela sua personalidade mais do que exuberante, lugar primeiro nas bibliografias respectivas de fiéis devotos e inimigos acérrimos.
Mas quanto aos primeiros há livros a evitar completamente. Os que descrevem o Presidente como um novo messias descido do céu. Cuidado! Messias há um só!
DA BOA HISTÓRIA AO LIVRO DEFINITIVO
O que se pretende encontrar nos livros?, pode legitimamente perguntar quem vive arredado de tal universo; ou, pelo contrário, tão embrenhado nele que por vezes lhe escapa o próprio sentido da procura.
Pois deseja-se conhecimento, cultura, factos que se não lembram ou que nunca se cominaram… e, nos extremos opostos, quer-se apenas uma boa história ou… o livro definitivo. O que responde a tudo. Daquele domínio particular. Ou a tudo de tudo. A vulgarização do qualificativo “bíblia” para designar o livro-chave de cada disciplina ou matéria precisa tem esse sentido. E para os cristãos, a Bíblia verdadeira, a do Antigo e a do Novo Testamento, é mesmo o livro definitivo. Onde à sabedoria humana, de milénios de civilização, se acrescenta e a ilumina completamente a sabedoria de Deus, nesse diálogo permanente, por vezes nada fácil com os homens. Frequentemente procurei e procuro nos escaparates o que se vai escrevendo em torno destes temas.
E é assim que tenho frequentes encontros com Deus nas livrarias.
Carlos Frota