Era uma vez a casa dos meus pais
Uma advertência, logo de início nesta crónica. Hoje a minha conversa é “descosida”… Começarei por referir as minhas viagens ao nada, para vossa surpresa. Mas apresso-me a explicar.
Para quem foi expatriado à força do seu lugar de nascença, por razões históricas que não vêm agora ao caso (como milhares e milhares hoje) há “geografias do nada” que é preciso circum-navegar com precaução.
São terras que existem e não existem ao mesmo tempo, são cidades e ruas e praças e jardins construídos muito mais de imaginação do que de pedra, cimento e asfalto, pois enquanto estes materiais se foram esboroando com o tempo, a imaginação foi preenchendo as crateras, as rachas, os buracos…
Quando, 34 anos depois, entrei na casa onde tantas vezes estivera, alegre casa de família, sem luxo mas confortável, onde meus filhos brincaram – o que se me deparou não poderia ser mais deprimente.
Da vivenda de outrora, só restavam as paredes, e mesmo estas como que massacradas por mão humana que as quisera destruir sem conseguir.
E ao fundo do que fora a sala de jantar, vi uma velha mesa. Aproximei-me dela como que num pressentimento. Era a nossa mesa da sala de jantar! Parece que esperara por nós para se despedir! 34 anos esperara por nós aquela mesa! – …fantasiei eu, num dos meus impulsos de literato desocupado. Acariciei-lhe a superfície rugosa e fui-me embora. Tudo se perde na vida, menos o essencial.
Há dias, foi encontrado num quintal abandonado – dele recebemos fotografia – o que resta do velho jipe, o Land Rover cinzento que assegurara uma vida de trabalho a quem já partiu também.
Ao meu lado alguém nada disse mas pela expressão percebi o sofrimento interior. Não são as coisas materiais que contam, é verdade. Mas o que de vida vivida fica agarrado a elas. Arrancar ainda fere. Ainda dói.
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Voltei pelo menos duas vezes, pela imaginação, em poucos dias, neste forçado mas agradável verão macaense, à antiga casa de meus pais, perdida que esteja na dupla geografia da terra que não existe e continua a existir ao mesmo tempo.
O meu primeiro regresso ao passado foi para reencontrar memórias de leitura de um escritor, de que sou um admirador indefectível e de que dou conta noutro texto escrito e noutro lugar.
O segundo regresso tem a ver com o que conto já a seguir. Uma advertência todavia. Hoje a minha conversa é “descosida”.
Assumo que me pus aqui a falar sozinho, à frente da folha de papel, e que fui navegando num mar sem costa à vista, nem bússola para me guiar. Onde esteve o meu Norte, na viagem-monólogo que vos vou narrar? Quase não esteve. Por vezes os caminhos da alma levam-nos a florestas silenciosas, a praias desconhecidas, a enseadas sem gente, a esconderijos onde pensamos encontrar o significado das coisas essenciais.
É aí que repousamos, mesmo que por breves momentos. Porque do essencial precisamos nós. Do que não perece. Do que não se estraga. Do que não tem prazo de validade. Do que, no limite, nos mostra a futilidade inevitável de uma lógica de mercado, transformada na lógica da nossa vida toda.
Comprar mais. Ter mais. Parecer mais ou melhor. E assim nos tornamos prisioneiros da comédia humana.
Era uma vez na casa dos meus pais, começo eu. Aí, para a maioria esmagadora de nós, começa o mundo a organizar-se, a partir da massa informe que nos envolve à nascença.
Dos odores e dos afectos, das cores e dos ruídos, da percepção dos rostos à forma da carícia, tudo se vai encaixando lentamente nesse labirinto apto a encher-se da nossa progressiva experiência de vida. Da nossa e da dos outros.
Era um ver sem ver…
Havia, na sala de jantar da casa de meus pais, como de tantas famílias cristãs, um bonito quadro da Última Ceia a que, devo confessar, nunca dei grande importância, dado ter estado ali desde sempre – e não suscitar por isso qualquer motivo para um interesse súbito ou especial. Era daqueles elementos decorativos que, de tanto ver… eu deixara há muito de ver, realmente.
Vivi pois indiferente, durante os anos da meninice e da adolescência, a esse olhar, último e benigno, de Jesus para com os seus discípulos e em torno dos quais decorria a nossa vida familiar.
Almoços e jantares de família ali decorreram, perante Jesus, na Sua permanente despedida antes da agonia, e eu a olhar para Ele sem ver. Meus pais eram católicos de missa dominical infalível e de Terço diário. De minha avó paterna lembro a velhinha doce e sorridente, ou entre sorridente e resignada, aliás, retirada no seu quarto a espaços regulares, para estabelecer ligação com o Altíssimo, através do seu Terço também ou do seu livro de orações.
O Belo e o Divino
Nessa atmosfera envolvente me criei e cresci, tentando conjugar tudo isso com os desafios e contradições da existência “lá fora”, onde a vida se processava, como sempre acontece, na brutalidade das opções e na ausência, quase sempre, de almofadas salvadoras, para amortecer choques e minorar feridas e suas sequelas.
Vem tudo isto a propósito de, durante o período mais restritivo da recente quarentena generalizada, ter feito várias tentativas, debalde, para ver pela Internet os Museus do Vaticano, mas que em vez deles repetidamente visitei, de forma digital também, a Capela Sistina, com os vagares (quase!) de quem tem a eternidade do seu lado…
E ao ver tanta beleza concentrada, no lugar mais fortemente simbólico do Catolicismo, depois da Terra Santa, não pude deixar de pensar mais uma vez no quanto as ideias de céu e de divino estão associadas para nós às noções de belo e de beleza.
Outra impressão, fortíssima, não recolheram os pequeninos Francisco e Jacinta Marto e a primita Lúcia, das seis visões da Senhora “mais brilhante que o Sol”. As suas descrições confirmam a beleza extasiante do que lhes foi dado ver e lhes deixou uma marca indelével, no seu espírito de crianças.
Para além do óbvio
Não tenho qualquer competência científica para avaliar da veracidade das narrativas extraordinárias de gente que diz ter experiências “post mortem” e que, contra todas as probabilidades, “regressam à vida” e contam o que viram para além da fronteira intransponível (para todos os outros).
Mas quase todas essas descrições coincidem num objecto comum, paisagens onde predomina a beleza e a luz.
Ao longo da História duplamente milenar da Igreja, igualmente o traço comum às experiências místicas dos seus santos é o da existência da Luz e da Beleza, como dimensões inerentes ao Eterno, a que somos chamados.
E depois?
…perguntar-me-ão. O que é que isso nos aproveita, a nós que temos que fazer ainda una caminhada terrena, maior ou menor seja ela?
Eu diria, arrepiando a pura racionalidade da “fé”… dos que a não têm… que pensar no Além é inevitável para quem coloca nele as esperanças de que TUDO SERÁ REVELADO então. Temos fome e sede de saber. TUDO SERÁ REVELADO então.
E a partir dum quadro que não via, passei neste meu monólogo a ver afinal o que me parecem ser os contornos do Universo todo.
Carlos Frota