Caminhos do meu escrever…
Inveterado escriba! – assim me trato, entre o irónico e o auto-condescendente, sabendo bem o quanto a Quaresma, a Semana Santa e o período pascal suscitam sempre, na mente de quem crê e gosta de escrever, uma predisposição natural para exprimir sentimentos e emoções “através da pena”, há muito substituída pela funcionalidade tão prática do teclado…
Sentimentos… emoções, ainda por cima em plena revolução mundial, em todos os domínios do comportamento, a que está a ser causada pela pandemia do coronavírus!
E assim o escriba impenitente centra-se no que foi rabiscando. E releio o que sobriamente escrevi no Facebook, durante a Semana Santa.
Registo quatro entradas apenas, a marcar tão só o que me pareceu o essencial. Na Sexta-feira Santa escrevi o seguinte: A Cruz – Uma narrativa sem sentido? A ilusão/utopia de uns tantos? Um objecto de adorno? A verdadeira revolução pacífica? O convite sempre presente ao recomeço da História dos Homens? Um sentido de vida plena? Se as leituras são muitas, a interrogação é inevitável. E permanente. Em 2020, o Cristianismo, incluídas todas as suas denominações, conta com 2,6 mil milhões de crentes.
Depois da Via-Sacra, na Praça de São Pedro, sintetizei a minha emoção com esta breve nota: “Sexta-feira Santa ou da Paixão – A Via-Sacra. Na Praça de São Pedro deserta, uma via-sacra ‘especial’ este ano, com as catorze estações decalcadas no sofrimento humano, concreto, dos dias de hoje. Com exemplos reais de vidas vividas, lágrimas choradas, afectos desfeitos e tantas vezes sublimados. Para os nossos amigos ateus e agnósticos, pode bem ser entendida como uma aula magistral sobre os desafios extremos da vida (e o seu sentido último, se cada um assim quiser). Para os cristãos, foi sem dúvida uma prolongada, belíssima, comovente oração”.
Retomei as minhas impressões sobre a quadra após ouvir a homilia do Papa Francisco, no decurso da Vigília Pascal. E ainda na minha página do Facebook registei a minha reacção quase imediata à mensagem do Santo Padre. Escrevi assim: “Vigília Pascal com o Papa Francisco – Ir procurar a Esperança onde ela habita, ir procurar a Luz onde ela jorra…”. E depois citei São Pedro: “porque só Tu tens palavras de vida eterna”.
Saboreei lentamente as palavras reconfortantes do Pontífice. Fiz delas, se me é permitida a expressão pouco usual, travesseiro para a cabeça e cobertor para o corpo, num sono breve.
E depois, mais uma vez me vem a noção de que, em qualquer leitura que se tente sobre a realidade, ou esta é vista numa perspectiva coerente que nos leve a entendê-la e a incorporá-la na nossa visão do mundo, ou não nos libertamos da confusão dos factos, amenos ou brutais que sejam, e o escuro persistirá para nosso desespero.
É que, quer queiramos quer não, ficámos no escuro, mesmo que por breves instantes, em termos de tempo histórico. As luzes do tecto não se apagaram, a televisão e ou o computador e ou o telemóvel estão ligados simultânea ou intermitentemente. Mas por brevíssimos instantes, cada um à sua maneira, sentimo-nos às escuras. Sustinha-nos a ilusão do eterno, do inalterável quotidiano. Este quotidiano provisório que para nossa segurança promovemos a definitivo, sabendo que não é.
Reparem… e até custa a crer! Um planeta construído com países poderosos, com homens poderosos, com meios materiais poderosos, numa corrida desenfreada para a hegemonia global, ou para a supremacia pessoal, através das finanças e da técnica. Um mundo onde toda a gente comunica com toda a gente, viaja para todo o lado, conquistando definitivamente as fronteiras da Geografia. Um mundo onde são inesgotáveis as fontes do conhecimento, com milhões e milhões de livros, revistas, jornais, documentos, teses, comunicações científicas, ao alcance de todos, dependendo de um premir de tecla do computador!
A ciência progride, a tecnologia dá saltos de gigante, e tudo nos leva a pensar que estamos quase a construir a civilização do tal homem novo, apoiando-se nos escravos-robots para o servirem nas tarefas menores, a fim de ele se dedicar, enfim liberto, aos grandes desafios do espírito… que ninguém sabe onde conduzirão, aliás!
E de repente, como noutros momentos do passado, a Terra hesita, a Humanidade confusa tropeça, cambaleia, e mesmo que se reerga rapidamente haverá feridas que ficam, cicatrizadas tardiamente umas, feridas abertas para sempre outras, porque o inimigo invisível bateu ou não bateu à porta e entrou na mesma… e de muitas maneiras.
Tantas lupas temos para detectar o invisível, tantos telescópios, tantas máquinas poderosíssimas para captar o (quase) infinitamente grande… e é o infinitamente pequeno que nos atraiçoa! Parece que alguém se ri de nós! Parece que alguém se ri da nossa prosápia, do nosso auto-endeusamento, deste culto do ego, a que individual ou colectivamente nos dedicamos, indivíduos e países, uns por razões de auto-superação histórica, num desafio lançado a si mesmos, outros inebriados por uma falsa noção de hegemonia, que no seu entender não está sujeita a desafios.
Capto ainda os tópicos que me pareceram os mais fortes, de entre todos os pontos fundamentais da Mensagem Pascal do Santo Padre, o Papa Francisco: Não à indiferença, não ao egoísmo (também dos Estados), cooperação e entreajuda, fim dos conflitos, fim das sanções, perdão da dívida dos países mais pobres. Apelo à superação das divisões no seio da União Europeia.
Ora aqui estão, digo para comigo mesmo, as grandes questões que só em períodos de crise grave como este se podem encarar com um olhar novo que ultrapasse velhas rotinas e antigos preconceitos!
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Por que abordo este tema, desta maneira, no “nosso” O CLARIM? O CLARIM tem sido, há alguns anos já, uma espécie de casa acolhedora para este escriba impenitente, sempre interessado/apressado a seguir a actualidade, mas que decidiu ver, neste nosso semanário católico, aquilo que um semanário católico realmente é. E o que é, no meu entender? Pois é um lar construído de palavras e ideias, um lar humano, afectuoso, onde o tempo é ritmado segundo os ponteiros de um relógio especial, os do tempo da Igreja que são o da actualidade, mas mais do que isso. São os de um calendário original, em que passado, presente e futuro se confundem, na visão intemporal do seu Fundador.
Momentos fortes, os desta Páscoa especial, acabados de viver! Uma Páscoa virada para dentro de cada um de nós, para esse templo interior onde, a participar na liturgia complexa da Paixão de Cristo, estiveram os diferentes personagens que fomos sendo pela vida fora, da criança de berço ao garoto ou garota que gatinha, do aluno/a de escola ao/à adolescente hesitante nas primeiras decisões de adulto, do homem ou mulher na plena maturidade, à idade da sabedoria, para os que já a ela chegaram.
E o Santo Padre foi ensinando, durante toda a Quaresma, a olhar a vida de forma por ventura mais concentrada no essencial, perante os desafios da pandemia que tragicamente alterou as nossas vidas.
Os templos estiveram fechados. A casa tem sido o palco quase exclusivo desse teatro da vida, onde os pequenos/grandes dramas do quotidiano se entrelaçam com sonhos e afectos partilhados.
Como veremos o mundo depois da crise? Ousaremos reconstruí-lo diferente?
Carlos Frota