Era já tarde e chovia...

VATICANO E O MUNDO

Era já tarde e chovia…

Já estive, já estivemos todos em muitas praças do mundo, nem que tenha sido apenas as da capital do nosso país, da nossa vila, da nossa aldeia. Com ou sem Igreja Matriz. Ou Monumento aos Mortos da Guerra, de todas as guerras, ou a qualquer general a cavalo, herói de batalha esquecida, ou então estátua de político recente… sujeita esta sempre a substituição.

São muitas vezes locais de encontro e de convívio, sobretudo se tiverem zonas verdes, ou de ameno passeio em dias sem notícia, que se calhar são os de maior importância para nós, desde o encontro de namorados que se recordará para sempre à deambulação ociosa com filhos e depois com netos.

Mas claro que às praças famosas estão associados acontecimentos que não acabam apenas nos nossos álbuns de fotografias. Muitas vezes têm a ver com a própria História do país ou do mundo. Por razões mais do que óbvias, está nesta última categoria aquela sobre que vou escrever.

Pela sua configuração, parece um grande templo em céu aberto. E quem olhe para o vasto espaço a partir da basílica, dois braços abertos acolhem a cidade e o mundo. Urbi et Orbi.

O PAPA E O MUNDO

A grande praça está totalmente deserta. E no fim da tarde chuvosa, o já idoso pontífice, centro único das atenções das televisões de todo o mundo, como sempre vestido de branco, no fim de tarde triste, claudica de forma talvez mais pronunciada. E apoia-se como sempre no braço amigo e deferente de monsenhor Guido Marini, fielmente a seu lado, para subir as escadas até ao altar, na praça onde não há rigorosamente ninguém.

A atmosfera é a de uma gigantesca sala de espectáculos onde o actor único vai representar uma peça de teatro absurdo.

Pois é precisamente nesta total estranheza que reside a grandiosidade do momento.

SÓ O MOMENTO CONTA

Repito devagar para mim, para me deixar totalmente impregnar pelo que acabo de apelidar e vou repetir: a grandiosidade do momento: a praça completamente deserta, num fim de tarde deprimente, chuvoso. E isso tudo a ampliar o surrealismo do quadro, com a chuva a cair lenta, como se lágrimas escorrendo silenciosas, do rosto visível da Igreja Universal. Gosto desta imagem que sinto não ser só literária.

E ali estava um velho homem sozinho, frágil na sua humanidade, para falar dos homens, de todos os homens, a Deus. Dos que acreditam e dos que não acreditam. Mas ali estava também um velho lutador movido pela Fé, para falar de Deus aos homens. Desse Deus que pôs a Sua confiança em todos os homens. Os que acreditam, os que não acreditam, mas que podem ouvir sempre o Seu apelo.

Olhei demoradamente para esse espectáculo único da Basílica de São Pedro, de portas abertas para… ninguém, ou então, melhor dito, de portas abertas para esse mundo invisível, com quem a Igreja dialoga sempre, mas agora um mundo não composto apenas dos serafins, querubins, tronos, dominações, anjos e arcanjos da corte celestial, mas de pessoas de carne e osso, fechadas a sete chaves, em suas casas, com medo da pandemia.

(Ironizando um pouco, há duas maneiras de nós todos nos tornarmos invisíveis, antes de a eternidade nos bater à porta, naturalmente: um grande mágico… ou um grande susto. Já compreenderam a que categoria pertence o coronavírus…).

DA MULTIDÃO AO DESERTO

Praça de São Pedro. Lembrei-me de dias festivos naquele mesmo lugar, com milhares e milhares de pessoas disputando o espaço para verem o Papa, este e os antecessores, desde o momento decisivo do fumo branco na chaminé da Capela Sistina, até aos grandes momentos litúrgicos das missas pascais ou da canonização de santos.

Agora o profundo silêncio desse pastor solitário, como que a oficiar as exéquias de todas as esperanças da Humanidade.

Mas não. Eu não me enganei. A mensagem era a oposta. Era a de aflição de todos nós mas, no final, a de uma profunda Esperança. De regresso ao interior da basílica, o Papa convidou todos nós a momentos de Adoração perante o Santíssimo exposto, que é dos momentos mais ricos de significado da espiritualidade católica.

Na sua meditação na Praça deserta, Francisco convidou-nos a aproveitar este momento único de paragem obrigatória da nossa vida normal para, cada um a seu modo e conforme a sua circunstância, repensarmos o caminho que temos percorrido colectivamente.

E mesmo que alguns, de manifesta má fé, tivessem a veleidade de ver nas palavras do Papa o oportunismo de quem explora momentos de fragilidade humana, Francisco não condenou ninguém, não meteu medo a ninguém, não se substituiu ao julgamento último d’Aquele em cujo nome fala, prega, ensina, para premiar uns e castigar outros. Apenas nos colocou perante os grandes desafios do nosso ser-humanidade, estando a “construir” (?) o mundo como estamos.

Tudo é responsabilidade nossa. Isso já sabíamos? Pois é, mas esquecemos com demasiada frequência.

UM LABORATÓRIO DO HUMANO

Visto a bata branca do meu equipamento laboratorial e arranjo os seguintes rótulos para colar em diferentes frascos com os respectivos pozinhos:

Rótulo 1. Políticos que apelam à solidariedade e à cooperação entre nações, neste momento de crise sanitária universal gravíssima.

Rótulo 2. Políticos que transformam a presente crise num instrumento de poder, do seu poder, interna e internacionalmente. Que exigem elogio e deferência (vulto da personalidade!) por estarem a fazer apenas o que as suas responsabilidades obrigam a que façam. Eles foram eleitos também e sobretudo para isto. Sobretudo para isto, que exige devoção, altruísmo e sentido de serviço, e não exaltação do ego, vaidade, egocentrismo.

Rótulo 3. Médicos e enfermeiros indefesos, sem protecção adequada nem sem ser adequada ao vírus, e que mesmo assim vão trabalhar, com risco da própria vida.

Rótulo 4. Pessoas idosas cuja culpa é terem vivido demais e que por isso são negligenciadas no tratamento para libertarem camas para outros que valham mais a pena, nos hospitais.

Rótulo 5. Políticos e outros estrategos que assim pensam.

Rótulo 6. Países super ricos sem hospitais, enfermarias, equipamentos hospitalares suficientes.

Rótulo 7. Países pobres.

E assim, sucessivamente, até ao rótulo cento e tal…

De repente, tenho vontade de sair e apanhar um pouco de ar livre. Não estou na Europa, não serei portanto interceptado pela polícia, que me perguntaria por que não estou em casa, a ler mensagens no Twitter, Instagram, Facebook, filmes no YouTube ou Netflix, etc., etc., etc.

É que isto de julgar comportamentos humanos tem que se lhe diga… e ninguém sinceramente espera que o Criador junte, à perigosidade já comprovada do Covid-19, uma inundaçãozinha generalizada que nos obrigue a recriar à pressa uma Arca para o novo Noé…

O homem solitário da praça deserta não esqueceu toda a bondade que gente anónima coloca nos seus gastos do dia-a-dia, esses heróis sem estátuas nem lugares nos altares que são a melhor parte do mundo que somos.

Carlos Frota

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